Refugiados

Aylan Kurdi é um nome que todos ouvimos nos últimos dias: é o nome da criança síria encontrada morta, de cara para baixo na areia de uma praia turca. Se tivesse sobrevivido só lhe restaria o pai já que, tanto a mãe quanto o irmão, perderam a vida numa tentativa de fuga à guerra que assola a Síria e que tinha em mira o Canadá, ainda que com o seu pedido de asilo indeferido. Esta morte, tendo sido fotografada e tratando-se de uma criança, parece estar a provocar uma onda de compaixão com os refugiados sírios pelo mundo fora.

Efetivamente, serviu à frase de Stalin quando disse que “um milhão de mortos é uma estatística; uma morte é uma tragédia” e essa dessensibilização tem sido muito evidente. Por exemplo, David Cameron, literalmente de um dia para o outro, deu a entender que a Inglaterra pode reconsiderar a sua posição veemente de oposição à entrada de refugiados em solo inglês pois “está disposto a cumprir com a sua obrigação moral”.

Eu pergunto: quando é que passou a ser precisa a foto de uma criança morta para pessoas, governos e a própria UE se solidarizarem com pessoas que nem a própria sobrevivência ao longo do dia em que vivem têm como garantida? Para quem alimento é um luxo, água é ouro, casa um sonho, não têm quaisquer bens, liberdades, garantias, até nem pátria. Para quem atravessar o Mediterrâneo implica perder a família ou até a própria vida. Nem milhares mortos à porta das casas, na nossa costa abrem os olhos.

Vêm memórias, em criança, de deixar alguma comida no prato e escutar aquela singular frase: “há tanta gente em África a morrer à fome, não desperdices” e por acaso era bom se caridade se resumisse a comer, não conhecia ninguém fora de uma morgue que não fosse caridoso. Pior é quando benevolência deixa de se reportar à ingestão de bifanas e passa a necessitar de algo que não constitui uma obrigação biológica. Porém, até isso parece ser demais para as aberrações sub-humanas que estão a tentar contaminar o imaculado solo europeu. Imaculado com a exceção dos seus 6000 concidadãos que estão nas fileiras do ISIS.

Esse rapazinho era para a sua família sinónimo de futuro e cada um que olhe para o cadáver sente esse vazio, quando morre a criança, morre a esperança. Tétrico é quando a morte da criança despoleta reações capazes, por si só, de matar a esperança na humanidade. Uma dessas, que quase passou despercebida, foi a do Conselho Português de Proteção Civil (não confundir com a ANPC) que compartilhou a foto de Aylan morto no Facebook com a frase “ensine o seu filho a nadar, para não passar o resto da vida a lamentar” (sic). Já têm o lugar no céu garantido pois, se bem me lembro das enfadonhas aulas de catequese, é devido um aos pobres de espírito. A mensagem não está errada porque todas as crianças devem efetivamente aprender a nadar: o timing e falta de sensibilidade, sentido de oportunidade e bom senso estão muito errados. E a rima é ridícula, é tipo uma piada sobre reciclagem de alumínio em cadáveres que ouvi uma vez.

Outra pérola foi a de António Costa ao referir-se ao mesmo desfavorecido grupo: “Quando vejo o estado em que está a nossa floresta e em que vejo os proprietários e os autarcas das zonas de pinhal interior a queixarem-se de falta de mão-de-obra para a manutenção do pinhal mas está aqui tanta população que está habituada a trabalho agrícola, tanta população que tem capacidade de trabalhar nesta floresta. Porque é que nós não criamos aqui uma grande oportunidade de recuperar um património que temos abandonado…” (sic)

Isto é tão… errado… dava para fazer um cartaz eleitoral novo, parece que já o estou a ver com António Costa a dar um aperto de mão ao sírio com o seu turbante, o seu machado e um monte de caruma que apanhou nos minutos anteriores.

Mas é sério que a primeira coisa que um líder partidário e candidato a eleições legislativas se lembra de sugerir, ao abordar o tema dos refugiados, é de os acolher para reabilitar pinhais? E será que realmente acredita que todos os sírios são agricultores ou mão-de-obra primária? Qualquer enfermeiro, fisioterapeuta, médico, advogado, juiz, alfaiate, comerciante, ferreiro, operador de telemarketing, segurança noturno, polícia, veterinário, entre outros, provenientes da síria têm uma pós-graduação em engenharia florestal ou arquitetura paisagista. Mais ou menos como qualquer português teria que se apresentar para o Dia da Defesa Nacional e para uma formação intensiva em pesca de bacalhau.

Não me cabe que não haja um resquício de humanidade em quem nos governa ou pode vir a governar. Não é cabível que um líder não sinta compaixão por aqueles que lidera ou que, por força das circunstâncias têm o seu destino nas mãos dele. Se a tem, que só posso esperar que sim, expressou-se deploravelmente mal, resta esperar mais declarações da sua parte para fazer média com esta e dar a entender o que realmente vai na sua cabeça de refugiados se trata.

Para concluir não podia deixar de me referir ao anticristo moral da Europa. Muros a fechar as fronteiras, arame farpado, comboios de refugiados enganados e levados para um campo para serem registados e encaminhados… Lembra alguma coisa? Mas estou a falar da Hungria que é, até agora, o maior opositor à entrada de refugiados na Europa. Parece que são “problema da Alemanha”, diz o seu PM friamente.

Comentários? Nenhuns, se fosse refugiado preferia tentar a minha sorte em qualquer outro país europeu, muito me admiraria com o contrário. Não darei importância ao tema da Hungria porque acho que não há por onde ser pedagógico aqui uma vez que se algum leitor não sente repulsa por uma frieza assim, não há palavra que eu produza no teclado do meu portátil que lhe mude essa opinião.

Ninguém está em desacordo quanto ao facto de não podermos acolher a Síria inteira dentro da Europa (menos ainda toda a área afligida pelo conflito) mas temos a obrigação de acolher todos os que pudermos, quanto mais não seja para conservar a autoridade moral que temos como União Europeia, como farol de esperança, para pressionar o resto do mundo livre para acolher as vítimas do fallout da primavera árabe. A aversão que alguns portugueses sentem a esta ajuda é, penso eu, um resquício da mentalidade de valores superficiais, de aparências e da pobreza intelectual do Estado Novo. Não queiramos ser monumentos a tão vil passado, a um capítulo tão desprezível do nosso orgulhoso património histórico, esqueçamos o absurdo do “Deus, Pátria e Família” para deixar espaço para que novos valores de “Humanidade, Progresso e Liberdade” se levantem já que são condição sine qua non de uma vida que vale a pena ser vivida.

Crónica enviada pelo leitor Francisco Pereira