Retrato de infância

Aonde poria a minha mãe, o retrato da minha infância numa fotografia que tirei nua aos três anos? Recordo-me dum senhor que nunca tinha visto antes, de barba branca igual a um Pai Natal que nunca tinha visto a neve, mandar-me ficar sentada, em obediência à minha mãe, enquanto, esforçando-se por me arrancar um sorriso, quem não parava era o meu pai a gesticular embora sem a arte dum malabarista a quem seja legítimo pedir que saiba fazer bem o papel de palhaço.

Sem conseguir fixar-me na posição que convinha ao fotógrafo, num momento de desconcentração da minha mãe eu quase caí e isso quase originou uma discussão grave entre os dois, que daria o mote para na adolescência vir a gostar mais de mulheres, se fosse atender ao facto de ter achado que a razão estava do lado dela.

Mudei demasiado nos últimos vinte anos, para alguém atento, vindo comparar-me àquela menina loura que surge na foto de sorriso rasgado, não pensar logo que estava enganado e na presença de outra pessoa.

Que eu não parava quieta, reclamava o meu pai, à revelia de a minha mãe alegar que, atendendo às circunstâncias anormais, eu mais não fazia do que comportar-me da maneira normal para uma criança da minha idade. Que eu não parava de abanar a cadeira, nem me calava, a despeito de ela achar que era do estado de nervos a que chega alguém que é forçado muito insistentemente a fazer algo que vai naturalmente contra a sua vontade.

Guardo aquela fotografia como a memória viva do esplendor de poder exibir-me nua sem restrições. Estava marcado prás 11, mas com receio de algum imprevisto que nos atrasasse, a minha mãe levantou-me cedo, praticamente à hora a que mandava o meu pai pró posto médico, quando precisava de ser vista numa consulta no próprio dia. Vestiu-me como uma boneca e só faltava rodarem-me a orelha para dizer mamã, papá, e ficar parecida com o modelo da Cindy que naquele ano foi o mais vendido no Natal. Com uma escova de cabo de madeira que retirou da gaveta, tentou pentear-me os caracóis loiros, mas foi preciso molhá-los para ficarem acachapados, dando a impressão de que só enquanto o cabelo não secava era possível andar com ele bem penteado.

Saímos finalmente de casa, eu ao colo da minha mãe, que a maneira prática de impedir que sujasse de pó os sapatos de verniz pretos que tinha comprado propositadamente para abrilhantar o ato. Só gostava deles porque faziam o barulho de tamanquinhas quando corria no corredor atrás do meu irmão, que parecia que ganhava asas, pois com eles enfiados nos pés não sabia por quê mas raramente conseguia apanhá-lo.

Fora isso, achava-os terrivelmente desconfortáveis e, sempre que podia, andava descalça. Partilhava já a opinião de que nenhum calçado pode ombrear em conforto, com o prazer de nos sentirmos despidos de roupa e preconceitos da cabeça aos pés.

Nesse dia, não sabia claro ao que ia. O meu pai pediu licença no trabalho para ir connosco e lá foi meio contrariado. Era um homem bonito e, apesar de já não ir para novo, diante de outras mulheres gostava de exibir a ponta de charme que na altura deve ter apaixonado a minha mãe.

Seguia na nossa frente, a arrastar pelo braço o meu irmãozito de cinco anos, que era mais alto do que eu, mas visto de cima parecia ter metade do meu tamanho. A quinze dias de começar a primavera e apesar do teto de nuvens baixas ameaçar calor, em boa hora a minha mãe decidiu vestir-lhe umas calças de fazenda e um casado de cotoveleiras gastas, igual ao dela, que parecia descer dum tempo em que o normal era ver casais na rua a namorar à janela.

Apeteceu-me sorrir, quando a ouvi dizer que ao meu irmão deviam ter feito o mesmo. Imaginei-o coitado a rebolar na cama, queixando-se de cólicas para não sair de casa e depois sentado numa posição desconfortável, no ato de desafiar os meus pais a mudarem de ideias, pondo o ar triste igual ao de uma criança que sabe que, independentemente do que queira, dali prá frente nada vai mudar. Mas preferia de vê-lo hoje, perante o facto consumado duma foto que nenhum de nós queria tirar mas agora me envaidece. E quão envaidecidos devo ter deixado os meus pais! No final, pelo resultado da sessão fotográfica que ainda durou menos tempo do que o previsto, tanto mais que, à saída, nem sinal na loja de cliente à espera de ser atendido, nem no exterior à espera que saíssemos com cara de que querer entrar.

Dali resultou a foto de corpo inteiro duma menina de ar feliz, na posição de Buda sentado, a quem também nunca ninguém perguntou se era só assim que gostava que o vissem ou, de vez em quando, preferia aparecer deitado.

Onde guardaria a minha mãe a foto que não havia meio de encontrá-la? Mal apareça darei graças a Deus, feliz de achá-la e só não desato a procurar moldura para encaixá-la, porque corro primeiro à loja e mando fazer um póster.

FIM