Retro Review: Dune (1984)

Um livro impossível de filmar, uma história demasiado complexa, e um universo demasiado profundo para ser transportado para o grande ecrã. Dune é isto e muito mais, mas a sua história, embora épica e desconcertante, quebrou as barreiras que lhe foram atribuídas, e no meio de projectos e produções sem fim ganhou forma, foi gravado na fita, e tornou-se… um dos filmes mais contestáveis do século XX! Um filme de culto, renegado pelo seu próprio realizador, e criticado por muitos pelas decisões artísticas, e pela história incoerente derivada da sua horripilante edição, tinha tudo para dar certo, mas colapsou sobre a sua própria grandiosidade. Passados 33 anos do seu ano de estreia voltamos ao passado num review retro, para desvendar as incoerências desta discutível obra-prima de David Lynch, que tem muito para contar…

O ano é 1984, o mundo está de ressaca da trilogia original de Star Wars e já está à procura de uma nova saga que o prenda à tela. Depois de anos e anos a ouvir falar de uma adaptação do clássico de ficção cientifica de Frank Herbert, Dune, um jovem realizador, que tinha atingido o estrelato com várias nomeações para os óscares com O Homem Elefante (1980), está prestes a embarcar naquilo que poderia ter sido o seu magnum opus. O nome dele é David Lynch, e depois de anos em filmagens, tem como maior dos desafios convencer os estúdios da Universal que o filme deve ter três horas, em vez das duas propostas. Lynch opta, com ajuda de Dino e Raffaella De Laurentiis a simplificar muitos elementos da narrativa, desequilibrando o produto final de tal forma, que a recepção no cinema torna-se um misto de confusão e alguma dose de decepção.

Todas estas décadas depois, Dune tornou-se num filme de culto, embora nem isso traga Lynch de volta para um Director’s Cut. Segundo a mente por detrás de Twin Peaks (1990-) e Blue Velvet (1986), a experiência foi dolorosa, e trabalhar de novo por um minuto neste filme seria incrivelmente perturbante.

O Mundo Complexo de Dune

Já foi considerado O Senhor dos Anéis da ficção cientifica, no entanto, não são universos comparáveis. Poderiam até considerar-se opostos, embora o seu grau de complexidade leve à inevitável associação. Dune, escrito em 1965 por Frank Herbert, retrata um futuro longínquo para a raça humana, onde o universo é governado por regimes de natureza feudal não muito diferentes do que seria esperar de uma Europa Medieval, mudando claro na sua escala. A razão para este retrocesso civilizacional advém da ascensão das máquinas pensantes em milénios distantes. A grande dependência do homem em relação à tecnologia permitiu que um grupo de humanos escravizasse o universo, período que culminou com uma grande revolta, a Butlerian Jihad, onde os humanos voltaram a ganhar controlo sobre as máquinas, e baniram a criação daquelas que replicassem o pensamento humano. Os humanos foram, por isso, obrigados a evoluir de forma a compensar a perda destas máquinas, crescendo em intelecto e inteligência, nascendo no seu seio escolas e guildas que operam em dimensões especificas.

Dune passa-se longos milénios depois desta rebelião interplanetária, e todo o universo está de olhos postos num planeta que esconde por entre os seus vastos desertos  uma riqueza infindável, a “especiaria”, que permite viajar a grande velocidade pelo universo, e prolongar a vida daqueles que a consomem. Infelizmente provoca também vicio e algumas alterações no metabolismos de quem a experimenta. O nome do planeta é Arrakis, também chamado de Dune e está no centro do jogo de poder universal, cobiçado por guildas e casas, pois quem controla a especiaria, controla o universo. 

Enquanto o universo é controlado pelo Imperador Shaddam IV, da Casa Corrino, duas outras casas lutam entre si pela posse de Arrakis. A casa Atreides, liderada pelo justo Leto, e a casa Harkonnen, governada pelo impiedoso Barão Vladimir Harkonnen. Assumindo o cargo de governador de Arrakis, Leto decide mudar a sua residência para o planeta, mesmo contra a vontade dos seus conselheiros que prevêem uma armadilha, levando  consigo a sua concubina Jessica, uma antiga Bene Gesserit, uma irmandade de mulheres que detêm uma escola de pensamento e o monopólio filosófico da galáxia, e o filho de ambos, Paul Atreides. Para ajudar a manter a sua posição Leto terá de se aliar aos Fremen, povo do deserto que usa tácticas de guerrilha contra os seus principais inimigos, os Harkonnen. Este povo do deserto, dentro das suas crenças e tradições acredita na chegada de um profeta, intitulado de Muad’Dib, e que poderá muito bem ser o seu filho.

Paul Atreides, beneficiado por gerações de cruzamentos entre famílias reais que a sua própria casa desconhece, e pelos poderes que herdou geneticamente da sua mãe, está envolvido numa teia de intrigas que o levarão a enfrentar os seus medos, e a pouco e pouco, a ganhar o respeito do povo do deserto, algo que fará tremer a galáxia e terá consequências que nem ele próprio pode, dentro dos seus poderes de clarividência, desvendar ou evitar completamente.

A história deste universo não se limita a um único volume. Dune tem cinco sequelas escritas pelo autor e outras tantas escritas pelo filho do mesmo, o que muito tem enfurecido os fãs que não se revêem na escrita de evidente menos qualidade de Brian Herbert. A Dune (1965) segue-se Dune Messiah (1969), Children of Dune (1976), God Emperor of Dune (1981), Heretics of Dune (1984) e Chapterhouse: Dune (1985), todos eles pela mão de Frank Herbert. Estas obras percorrem um período significante que se estende às gerações seguintes da dinastia de Leto e de Paul, e introduzem as mais diversas tramas intergalácticas pelo controlo de Arrakis.

 O Dune de Jodorowsky

Em 1973, o realizador chileno Alejandro Jodorowsky pegou num projecto deixado pelo falecido Arthur P. Jacobs. Esse projecto era uma adaptação de Dune, e Jodorowsky apaixonou-se pelo universo, mesmo não tendo lido o livro. As ideias extravagantes do génio chileno, eram segundo as suas próprias palavras, criar uma experiência que permitisse experimentar os efeitos de LSD sem nunca consumir realmente essa droga. Desde requisitar grupos de rock progressivo como Pink Floyd, até entrar em contacto com Salvador Dali para interpretar Shaddam IV e Orson Welles para barão Harkonnen, todo o processo era vibrante e desafiava os limites da compreensão para um filme completamente à frente do seu tempo. Também H. R. Giger, que seria responsável pelo design do Alien de Ridley Scott, fez vastos desenhos dedicados ao que seriam cenários do filme.  Tudo atingiu proporções épicas! Com o aval do autor, Frank Herbert, o argumento inicial dava para um filme de 14 horas! O projecto acabou por colapsar, sendo que os direitos expiraram em 1982 e foram comprados por Dino De Laurentiis.

Jodorowsky tomou demasiadas liberdades criativas, e Frank Herbert foi sempre demasiado condescendente, derivado da sua felicidade em ver um trabalho seu adaptado para o grande ecrã. O Dune do realizador chileno é considerado o melhor filme nunca feito, mas se tivesse sido concretizado, embora uma maravilha técnica sem precedentes, pecaria em termos de narrativa pela sua total desconexão com o material original. O final proposto por Jodorowsky invalidaria toda uma série, e também toda a moral da saga, a lição de que o poder corroí e que as figuras messiânicas não compreendidas, e erradamente interpretadas, podem levar à destruição de uma ideia que inicialmente tinha como objectivo o equilibro das sociedades.

Dune (1984) – A visão de David Lynch

Há uma clara troca de realizadores no início da década de 80 que deixaria confuso qualquer pessoa, mesmo sem a visualização da versão teatral de Lynch. Ridley Scott era inicialmente o realizador, mas por motivos pessoais deixou o projecto abraçando outro, Blade Runner (1982). Já David Lynch, deveria ter realizado O Regresso de Jedi (1983), sendo muito provável que a batalha final entre Luke Skywalker e Darth Vader culminasse com o virar de Luke para o lado negro, e tivesse possivelmente um último plano onde se descobriria que todo o universo de Star Wars era de facto parte de uma orelha decepada na relva. Por alguma obra do destino, Lynch decidiu abraçar Dune e passar pelo pior pesadelo da sua vida.

O olhar de Lynch para Dune é desde início uma espécie de visão anti-Jodorowsky. Se o realizador chileno tentou produzir um filme de cinematografia colorida e berrante, Lynch apresenta um universo barroco, gótico e decadente. Usando algumas comparações artísticas mais ou menos exactas, se Jodorowsky estava perto de criar algo muito parecido com um quadro de Dali, Lynch pareceu pintar algo que facilmente teria assinatura de Hieronymus Bosch. Mostra um total equilíbrio entre o lado feudal e medieval do universo de Herbert, e o lado tecnológico, que nunca chega a tocar o steampunk. Visualmente tudo em Dune (1984) é uma maravilha estética, mesmo quando ignora a versão vivida do realizador chileno.

Lynch acaba também por surgir como o anti-Star Wars, isto porque, transforma a ficção cientifica num universo realmente alienígena e pouco familiar, onde nos primeiros 15 minutos somos catapultados através de uma dezena de termos diferentes para um filme que não tem tempo, e por vezes não se esforça, em esclarecer a audiência. Nalguns cinemas americanos foram entregues folhetos com alguma da terminologia de Herbert, como se de apêndices de um livro se tratassem. As personagens também não são construídas para que a audiência nutra grande simpatia pelo seu papel na narrativa. Não há o elemento familiar de Star Wars que permanecia na consciência colectiva como parte de um luto pelo fim da trilogia de Lucas.

Para quem estava familiarizado com Herbert, surge um conjunto de liberdades criativas, que embora reconheçamos como parte do génio de Lynch, têm efeitos adversos para o filme. E se algumas destas escolhas criativas que se seguem são ridículas, ao mesmo tempo, são a assinatura de um dos génios da Sétima Arte. Não é certamente uma desculpa, mas são pequenos apontamentos que marcam o filme e são ainda hoje ridicularizados, especialmente para quem está a par da obra.

A mais pertinente das críticas passa pela representação da Casa Harkonnen, que no livro é composta por indivíduos astutos, e com uma inteligência bastante cimentada. Lynch transforma-os numa facção impulsiva, bruta e pouco inteligente, adicionando os controversos heart plugs, que supostamente serão implantados ainda em criança e que apenas permitem que seja mais fácil matá-los com um ligeiro empurrão na fila para o almoço. Legítima a natureza horrenda da cena cortada que envolve um momento mais ou menos sádico entre o Barão Harkonnen e um dos seus escravos, mas é desnecessária.

Outro dos grandes let downs passa pela opção de David Lynch em usar voice-overs para ilustrar muitas das cenas. De facto, estes apontamentos fora adicionados quando Lynch foi forçado a comprimir o filme de forma a que coubesse em duas horas, mas tem uma ligação directa ao próprio livro. A obra tem muitos momentos onde as personagens partilham o que pensam com o leitor. Há algum mérito nessa ligação ao material original, no entanto, não resulta como seria expectável, mesmo quando a intenção do realizador tem uma base vincada na literatura. Esta direcção poderia apelar aos leitores se fosse bem executada, mas transmite apenas grandes quantidades de informação de maneira fútil e com pouco impacto.

Mas a maior crítica passa pelo final, e de facto, a liberdade criativa de Lynch consegue em menos de um minuto incendiar todo um conjunto de pessoas que cresceram com a obra. No final do filme…(SPOILER ALERT) chove em Arrakis. O filme tenta com este último momento cimentar os poderes messiânicos de Paul, mas também destruiria toda a “especiaria” segundo as leis do universo representado, o que invalida todas as disputas que poderiam existir com consecutivas sequelas. As más línguas salientam também que esperando críticas negativas a produção resolveu matar qualquer possibilidade de uma sequela fazendo com que o principal foco da série fosse destruído.

Os cortes feitos por Lynch e produtores têm também um efeito adverso para o equilíbrio do filme. O ritmo nem sempre é consistente. embora o primeiro acto seja bem conseguido e mantenha a coesão. O segundo e terceiro acto sofrem dos maiores efeitos, parecendo demasiado curtos em relação ao primeiro. O resultado é um filme onde relembramos e olhamos com maior admiração para a primeira parte, que se centra no esplendor e queda dos Atreides, que rapidamente passa para uma lenta, mas reduzida segunda parte, que subitamente nos leva ao confronto final entre Paul e aqueles que traíram a sua casa, no último acto.

Falando noutras escolhas interessantes, Dune também traz consigo algumas particularidades. Não é possível acusar o filme de falta de visão em termos de casting. Patrick Stewart, Brad Dourif, Jürgen Prochnow, acabado de sair do êxito alemão Das Boot (1981), Siân Phillips, e os actores mais novos, Sean Young, que curiosamente também participaria em Blade Runner (1982), e a estreia do menino bonito de Lynch desde então, Kyle MacLachlan.  Não há Dali, mas há Sting a usar apenas umas cuecas azuis, que supostamente seria um nu integral aceite pelo próprio artista, não fosse os produtores terem posto as mãos à cabeça e pedido alguma contensão na exposição de zonas pélvicas.

Também os Pink Floyd de Jodorowsky são substituídos pelos Toto, numa banda sonora que surpreende pela positiva, especialmente se pensarmos que o maior êxito da banda, África, não tem nada a ver com o tema principal, nem com a banda sonora no geral. Brian Eno também dá uma perninha com outra peça fascinante e bem ao seu jeito. Lembremo-nos que esta banda sonora está nas que deve ouvir antes de morrer!

O corte que perfaz a versão teatral infelizmente é insuficiente, e acaba por iludir a audiência para um filme que, devido à sua edição, não encanta. No entanto, a versão estendida, de três horas, dá uma outra vida a todo o filme, e para alguns, torna a fita num clássico de cinema. Esta versão estendida não tem qualquer edição de David Lynch, ignorando os voice-overs em prol de cenas alargadas e de uma introdução cuidada e mais exaustiva. Falta a esta edição algumas cenas que efectivamente existem, e que mesmo assim não foram incluídas nas três horas. A morte de Thufir Hawat continua a estar ausente, o que faz com que de um momento para o outro, uma personagem desapareça do plano sem que se perceba porquê.

A audiência que vê Dune pela primeira vez ficará confusa, mas essa é parte da magia de um realizador que não é conhecido por dar tudo de bandeja. Lynch quer que pensemos e interpretemos, neste caso, através de um universo que transpõe para o ecrã como nenhum outro conseguiu fazer. Certamente que Dune já teve uma adaptação para TV no inicio do milénio pelo canal Syfy, que através de uma mini-série conseguiu contar com alguma mestria a obra de Herbert, infelizmente não igualou os visuais que Lynch, e acabou por não ficar na memória daqueles quer queriam a derradeira experiência num dos mais complexos universos de ficção cientifica. Também videojogos focados nas imagens icónicas de Lynch foram desenvolvidos no virar do milénio, especialmente alguns RTSs da velhinha e reformada Westwood. Dune 2 (1992), Dune 2000 e Emperor: Battle for Dune (2001), estes dois últimos com representações reais de actores que se vestiram a rigor seguindo à risca o implementado por Lynch em 1984, usando versões digitais de sets utilizados no filme.

Denis Villeneuve foi há pouco tempo apontado como realizador de uma nova encarnação de Dune. Relembremos que o realizador franco-canadiano é o responsável por Arrival (2016) e realizou também um dos filmes mais esperados de 2017, Blade Runner 2049. A saga parece estar em boas mãos, resta que Villeneuve não se apegue muito à popularidade do filme nunca feito de Jodorowsky, nem ao suposto ódio exacerbado da discutível obra-prima de Lynch. O segredo é apresentar algo de novo, que possa catapultar a saga das páginas para o ecrã, e para a história do cinema.

No próximo fim-de-semana, mais precisamente no domingo dia 30 de Abril, o Cinepop, iniciativa cultural apadrinhada por Nuno Markl, e que tem lugar no Fórum Lisboa, antigo Cinema Roma, terá uma sessão única, que levará Dune (1984) de volta ao grande ecrã. É uma oportunidade única para sair da caixa, e que certamente surpreenderá muitos aqueles que apenas conhecem o lado mais popular da ficção cientifica. Para aqueles que ficarem interessados por mais, a versão estendida está a espreita, embora seja rara de encontrar em formatos mais recentes, como o Blu-ray. Resta desfrutar da visão única, de uma saga complexa e intemporal, numa tela avantajada, ou do conforto de um sofá.

 Volto no próximo mês com mais cinema….