Reviver o passado em Belo Horizonte

Revi Lolobrídida o outro dia. Mais gorda, ainda capaz de fazer parar o trânsito, mas já sem algum do fulgor de há quarenta anos, quando a conheci em S. Paulo no rescaldo da participação no famoso festival de música popular brasileira da TV Record de sessenta e oito, integrando um grupo de nome “Os Engenhocas”.

À época, eu palmilhava uma dúzia de quilómetros diariamente, para vê-la dançar num clube que em boa hora a contratou após ter-se desmembrado o grupo de três jovens músicos em que ela participava como bailarina e principal atração para levar mais público aos concertos.

Não me admirava que alguns dos seus cabelos brancos de agora, a mim se devessem e às discussões que tivemos por ser tão ciumenta. Na verdade, namorámos durante dois anos e quatro meses, durante os quais acumulei mais conhecimento acerca das mulheres em geral do que se tivesse convivido com mãe, avó e uma dúzia de irmãs em casa ou partilhasse com todas as amigas delas, na hora do duche o balneário de um ginásio de fitness.

Começámos a sair regularmente no dia em que completou vinte primaveras, andava eu preocupado em vão, a pensar, receoso, que para aceitar o meu convite estaria à espera de atingir a maioridade, que nalguns países é só aos vinte e um.

Ofereci-lhe embrulhada numa linda folha de papel decorado com flores e com o formato de um coração, uma enormíssima caixa de bombons de chocolate que tinha escrito por fora a palavra love, mas onde bastaria ao fabricante ter escrito que tinham recheio de doce de leite para imediatamente qualquer consumidor perceber que serviam para adoçar a boca a alguém.

Chamava-se Lolobrígida e não era muito alta, porém realçava-se no meio de uma multidão e até dava mais nas vistas do que outras da sua idade com mais vinte centímetros de altura mas de bunda menos saliente. E apesar de ser muito bonita, corava facilmente como se não achasse natural ouvir dos rapazes piropos a seu respeito ou dos mais atrevidos que eles ousassem pronunciar, pudesse legitimamente pensar que não correspondiam inteiramente à verdade.

Conhecera-a meses antes da primeira vez em que saímos para ir ao cinema. No decurso da quarta tentativa de esquecer uma antiga namorada, a quem uma caixa de chocolates idêntica àquela não bastou para ela perder a oportunidade de deixar bem claro que, em lugar daquela insignificância, teria preferido receber de prenda no aniversário, um frasco de cento e cinquenta mililitros de perfume francês da melhor qualidade que há muito tempo andava a namorar.

Tornara-me frequentador assíduo do antro em que ela dançava. Mais tarde do salão de dança, mas em primeiro lugar, do espaço onde funcionava um pequeno bar que às terças-feiras fazia uma promoção em que a compra da quinta cerveja valia a possibilidade de passar para lá e assistir ao vivo à exibição, em cima de um pequeníssimo palco, de cinco bailarinas que dançavam agarradas umas às outras como se tivessem receio de cair.

Foi lá que vi Lolobrígida pela primeira vez, numa curiosa dança a ondular a cintura e ancas, serpenteando da cabeça aos pés como se tivesse o corpo exposto ao vento ou à corrente de ar de quando abriam a porta para entrar mais algum cliente ou simplesmente um empregado transportando bebidas.

Senti-me subitamente arrebatado por uma imensa paixão. Contavam-se pelos dedos de uma mão, o número de vezes que o meu coração bateu tão descompassado na presença de uma mulher, no caso dela como se fosse a única no mundo ou neste planeta habitado só povoássemos nós uma ilha deserta.

Bateu forte cá dentro, ter contribuído para me salvar o dia, o sorriso dela exuberante e ao mesmo tempo discreto na forma como ninguém mais presente na sala percebeu que ele me era dirigido. De voz embargada, com que a funcionária da florista mal distinguiu se eram rosas ou cravos, no dia seguinte pedi para lhe darem uma dúzia de rosas no camarim, que era onde normalmente ela e as colegas trocavam de roupa, longe dos olhares indiscretos dos homens que só queriam ver se a lingerie com que atuavam era a mesma que traziam de casa vestida. Depois, passei a esperá-la diariamente, quer na entrada pela porta de serviço destinada aos artistas, quer à saída de onde só arredava pé quando a via dirigir-se casa, como se fosse para ver que embora mudasse frequentemente de companhia, nunca saía com uma indumentária diferente.

Um dia, ou melhor, uma noite enchi o peito de ar e ganhei coragem para saltar-lhe ao caminho. Larguei a sombra de um cartaz de madeira com uma folha enorme colada, que continha o seu nome escrito a letra de imprensa, mas que, ao invés de ser miudinha como nas páginas interiores, era grande como nos cabeçalhos ou títulos de primeira página: “Lolobrígida Consuelo” e em baixo para gringo ler “finest dancer”, a que eu me atreveria a acrescentar logo de seguida o epíteto de mais bonita e sensual dançarina de cabaret de todo o Brasil.

Mostrou-se surpreendida pelo meu modo arrojado de lhe aparecer à frente, que de repente lhe fez lembrar um assaltante saído da escuridão para lhe arrancar da bolsa do peito contra o qual a transportava apertada ou a medalhinha de uma Nossa Senhora que trazia pendurada num cordão tão fino, que passava a vida a rezar-lhe pedindo que o mesmo não se partisse para não a perder.

Selámos a recém-criada amizade com uma dose dupla de whisky para mim e um cálice de brandy para ela, tomados num bar longe do centro de S. Paulo, onde para eu entrar não precisava, como ali, de pagar um valor de consumo mínimo exorbitante, equivalente ao preço da dúzia de cervejas e quatro gins que, para não ficar no prejuízo, me sentia obrigado a beber antes de regressar de carro a casa.

Conversámos descontraidamente durante meia hora, enquanto decorria num canal da tv cabo, que estava ligada sem som, a partida da final da Taça intercontinental, uma espécie de mundial de clubes, o Santos de Pelé e os argentinos do S. Lourenço de Almagro, que para meu espanto terminou vencendo com dois golos de um chileno que só se tivesse nascido brasileiro podia ter aspirado ganhar a mesma competição ao nível de seleções.

Achei de bom augúrio perder a minha equipa, ver sair ante uma treinador cabisbaixo, o clube de que eu mais gostava vergado ao peso de uma derrota humilhante, embora estando plenamente consciente de que ter azar ao jogo nem sempre é compensado com a sorte no amor.

Por isso, hesitei entre convidá-la para irmos assistir ao romper da aurora a partir da janela do meu quarto às escuras ou vermo-lo pôr-se à tardinha, da varanda da sala onde poria uma mesa para jantarmos à luz das velas, depois de termos visto durante o dia tantas estrelas que dariam para ela acreditar que era efetivamente o centro do universo.

Pude então reparar melhor nela. O cabelo, nem curto nem comprido, mas encaracolado ao jeito de quem deveria gostar que os rapazes lhe entrelaçassem os dedos. A boca muito expressiva a sugerir que nem sempre são os olhos o melhor espelho da alma, porque no caso dela facilmente encontrava maneira de dizer a emoção que sentia. Os olhos a tremelicarem, à luz de uma candeia pendurada no teto que era baixo e, ao mesmo tempo, transmitia uma sensação de conforto e de segurança, assegurando que podia suportar o seu peso.

Contive, contudo, o entusiasmo quando me anunciou que fora acometida repentinamente de uma enxaqueca que a obrigava a voltar a casa. Chamei então o garçon e liquidei a conta, oferecendo-me para levá-la a casa sem demora no carro que tinha parado à porta, não fosse à dor de cabeça vir juntar-se uma alergia de que pudesse diretamente culpar o cheiro à água-de-colónia em que me tinha encharcado como se quisesse disfarçar um odor de não tomar banho há mais de dois meses.

Abri-lhe a porta do lado do pendura e entrámos, mas o motor não pegou à primeira. No entanto, chegámos ao nosso destino ainda a tempo de não ter acordado a vizinha cusca do rés-do-chão que anotava as horas a que ela entrava no prédio para ir de manhã contar aos pais.

À despedida nem fiz menção de beijá-la. Fiquei de telefonar à tarde para saber se estava melhor e regressei a casa, onde mal dormi às voltas na cama, porque estava preocupado que no dia seguinte ela não fosse trabalhar e assim não pudesse vê-la.

Voltei àquele lugar, apenas volvidas umas horas e sem ter dormido o tempo suficiente para distinguir se era ou não um sonho, o fantástico momento que estava a viver. Sentia-me apaixonado e contava os minutos para vê-la. O ponteiro das horas assinalava as oito, mas eu dispunha-me esperá-la o dia inteiro se fosse preciso, sentado no carro, de olhos postos na fachada no prédio de três pisos, numa busca incessante do seu rosto como se esperasse vê-la surgir em todos as janelas ao mesmo tempo.

Ao contrário do que aconteceu quarenta e tal anos mais tarde, em que sem estar à espera de vê-la me surgiu numa rua no centro de Belo Horizonte, mais velha mas ainda de ar encantador. Foi na saída da estação Lagoinha, virando na direção da Saturnino de Brito, nas imediações do UAI Shopping.

E não sei se ela me viu, porque passei sem olhar para trás. Só fiz agora, recordando o passado, porque me lembrei a propósito do tempo que vivi com ela, que continua a representar, pelo menos até ao dia de hoje, aquele que foi o maior e mais intensamente vivido, amor de toda a minha vida.