Rita, anda ver o verão! – Cap.10

Enquanto esperava a saída dos colegas, Rita não se mostrava ansiosa. Sorriu, recordando o dia em que interrompeu a aula, bem como a dissertação da professora de Inglês acerca do tema da sua malfadada tese de doutoramento intitulada De que modo os tempos e modos verbais dos verbos irregulares franceses se articulam com o presente do indicativo dos verbos regulares ingleses.

O toque estridente da campainha a dar o intervalo, soou ao tiro de partida para uma corrida de cavalos que ia terminar dentro de dez minutos. Já ninguém se lembrava do incidente ocorrido que devolveu alguma vida à sala, após uma exposição da professora acerca do modo de vida inglês, que à partida já se sabia que seria menos breve do que interessante. Sentado na última fila do auditório e com a cabeça assente no apoio da cadeira que devia servir para descansar o braço, um aluno dormia profundamente. Num leve suspiro que dava para perceber a sua ausência, alguns colegas perceberam que estava a ressonar e desataram a rir. E ainda por cima dormia tão tranquilamente que seria impossível estar a sonhar com o que estava para suceder.

Não tanto surpreendida como quando a situação ocorreu pela primeira vez, a professora interrompeu o discurso e iniciou uma manobra de aproximação, pisando levemente no soalho de madeira, que rangia porque não devia estar, no entanto, preparado para suportar tanto peso sem um leve queixume.

O visado, de nome Silvino, era o suspeito do costume e, pelas infrações que cometia nas salas de aula, dava menos trabalho a capturar do que um delinquente perseguido pela polícia, pelo facto de ser sempre apanhado a dormir.

Quando já se tinha aproximado do aluno o suficiente para ver que, no caderno de páginas abertas sobre o regaço, ele não tinha escrito uma linha de matéria que ela dera na última semana, a professora travou o passo e ficou sem reação, como se esperasse que fossem os alunos presentes a aconselhá-la sobre o que deveria fazer perante a gravidade da situação.

Em surdina, as raparigas comentaram e admiraram-lhe a coragem de vestir uma saia justa, ainda por cima tão amarrotada como um pergaminho datado da idade média, tendo ela as ancas roliças e um peito tão avantajado que não permitia apertar o primeiro botão do casaco. Muito menos apreciavam os sapatos pretos de tacão alto que arrastava como se fossem umas socas, aparentemente sem se perceber se era pelo peso e consequente dificuldade em levantar os pés ou pela necessidade premente de se fazer ouvir. A única coisa a que na sua vestimenta e adereços acharam graça, foi ao carrapito no alto da cabeça da professora, de onde pendia ao acaso um volumoso cacho de cabelos rebeldes.

Nem foi preciso fixá-la com atenção, para no rosto da mulher em brasa, as rugas de expressão ganharem contornos mais severos e, no lugar dos olhos, que chispavam, surgirem duas bombas-relógio prontas a deflagrar.

Mas ninguém queria ser visto como o causador da deflagração da qual o rapaz não seria o único a poder sair chamuscado e por isso imediatamente se calaram na sala. Mas nem seria necessário alguém acender um fósforo, porque ali mesmo ao lado havia material altamente inflamável propício a que a explosão se desse. O pavio da ousadia do rapaz era curto e, afinal, os colegas só contribuíram para o desenlace final, porque inadvertidamente acenderam o rastilho que a professora se limitou a seguir até lá chegar.

Quando a professora lhe bateu no ombro com a ponta de uma vareta que apontava ao quadro, Silvino tinha o ar assustado de um rapaz que acorda às pressas de um sonho e, pura e simplesmente, não sabe onde está.

As mãos largas, que podia ter aproveitado para unir em forma de conchinha fazendo uma espécie de almofada para colocar a cabeça enquanto dormia, juntaram-se em prece preparando-se para pedir desculpa pelo sucedido. Mas antes, caíam-lhe displicentemente ao lado do corpo, que se encolhera como se fosse para ela ter espaço e não ser com a desculpa de o rapaz ter os membros esticados que não conseguia passar para acordá-lo convenientemente.

Todavia, com a boca seca e sem conseguir articular uma palavra em sua defesa, o pobre estudante encheu o peito de ar e susteve a respiração, para todos pensarem que era por esse motivo e não por causa da sensação de medo pelo que podia suceder, que repentinamente ficou com a tremer, com a testa alagada em suor e a face rubra como um tomate.

A vantagem é que devido ao seu jeito trapalhão, achavam-no encantador, a maioria das raparigas que, para não desobedecerem aos pais, gostavam de cortejá-lo à distância, preferindo manter-se afastadas dele do que serem vistas na companhia de um rapaz que era famoso por faltar às aulas e ser namoradeiro.

Chamando as coisas pelos nomes, digamos que Silvino era um aluno mandrião que primava pela pontualidade com que se atrasava para ir às aulas, a que ia com a mesma frequência com que as evitava, muito justamente ganhando entre colegas e funcionários da escola, o epíteto de Rei dos Gazeteiros. Na mesma proporção em que esta alcunha lhe granjeou fama, trouxe consigo alguns dissabores. Valeu-lhe, por exemplo, ter-se tornado impopular junto do corpo docente que o apontava como um exemplo a não ser seguido pelos outros, mas acarretou uma responsabilidade acrescida para estar à altura de não dececionar os que, elogiando-lhe o caráter rebelde, ao longo dos anos tentaram imitá-lo, embora sem sucesso, temendo represálias por parte dos professores e os castigos infligidos em casa pelos pais.

Quase sempre, a forma de Silvino exteriorizar o que sentia, era enfiar-se de cabeça baixa nalgum recanto de onde não visse ninguém com quem lhe apetecesse ir conversar. Era a ocasião escolhida pelas raparigas mais afoitas que, tentavam tirar partido da debilidade dele para se aproximarem, na esperança de que aos seus olhos pardos sobressaíssem as virtudes delas que não eram visíveis aos olhos dos rapazes mais bonitos do que ele, mas por nada deste mundo queriam namorar com elas.

Faltava muito pouco para Rita lamentar não ter juntado cinco minutos aos que levava de atraso. Não teria visto o amigo passar por si desalentado após ter sido expulso da sala ante uma turma resignada por nada ter podido fazer em sua defesa e que unicamente poderia acusar de arbitrariedade a professora, se não estivessem todos cientes de que seria aquele o castigo que obteriam se tivessem tido o desplante de desafiar a autoridade, desrespeitando as regras que ela mesmo tinha estipulado naquele imenso auditório transformado em arena.

Ao Vê-lo passar cabisbaixo, Rita saiu intempestivamente atrás do amigo, esforçando-se por passar sem embater em ninguém, nem esfolar os braços nos cacifos abertos de ambos os lados que havia ao longo do corredor que ela já sabia onde ia dar. Já nem se lembrava de ir ter com ela e pedir à professora de Inglês que lhe retirasse a falta, pois preferia vir a ser acusada pelos pais de ser ter baldado às aulas, do que, estando lá, de inação na defesa do amigo que estava a ser humilhado.

Alcançou-o a meio da escadaria que conduzia ao bar da Associação de Estudantes, descendo apoiado no corrimão lateral que não se vergava ao peso da responsabilidade de impedi-lo de cair.