Rita, anda ver o verão! – Cap. 9

Atravessando uma porta em arco que dava para um pátio, Rita entrou no recinto de jogos a céu aberto, onde decorriam, para si à quarta-feira, as aulas de Educação Física. No chão atapetado e como se fosse uma alcatifa suja de nódoas, viu um conjunto de linhas pintadas, que mais não eram do que as marcações do campo onde se praticavam as modalidades coletivas. Tinham cores diferentes e para jogarem andebol eram azuis. As destinadas ao basquetebol eram vermelhas e de verde estavam pintadas as linhas do meio-campo e da grande-área, dentro da qual apenas os guarda-redes das equipas que jogavam futebol podiam tocar na bola com a mão. Qualquer outro que por engano o fizesse, nem com a justificação de que tinha confundindo a modalidade que estava a jogar, deixava de incorrer numa falta tão grave que era imediatamente punida com uma grande penalidade que consistia no castigo máximo.

Em face do maior número de degraus que havia no acesso ao anfiteatro, a jovem redobrou a atenção tomando cuidado para não cair. Ali, se tropeçasse e fosse com as mãos ao chão, fá-lo-ia diante de muito mais gente do que, como anteriormente, lá fora.

Devido à crescente afluência de alunos, as aulas de Inglês à segunda-feira de manhã, passaram a ser dadas num cenário de características únicas, em comparação com uma comum sala de aulas. A acústica era excelente, apesar de o espaço ser muito grande e ali caberem simultaneamente alunos de quatro turmas diferentes.

Mal se entrava no anfiteatro, era como se o chão à nossa frente se afundasse e, em direção ao fundo, se fosse descendo por uma rampa que ia dar ao palanque em cima do qual a professora, que era escutada atentamente, falava cercada de alunos por todos os lados.

Rita viu que a aula não tinha terminado mas não sentiu logo necessidade de se juntar aos colegas. Dando por bem empregue o esforço despendido na caminhada, sentiu-se revigorada física e mentalmente, achando que tinha pernas para continuar a andar, percorrendo o dobro da distância que tinha feito até ali. Não lhe tinha custado demasiado, andar a passo largo ao ritmo a que o fez, mas tornar a fazê-lo à chapa do sol que fustigava os transeuntes, nem que fosse do lado do passeio em que houvesse sombra, deixá-la-ia extenuada devido ao calor.

Agora que tinha parado, sentia o corpo a relaxar-se. Contraiam-se-lhe ainda os antebraços e as pernas, mas era como se os músculos que aos poucos ficavam menos dilatados, começassem a pedir descanso.

Em vez de uma entrada em cena de forma fulgurante, Rita optou por não chamar a atenção para o facto de ser uma atleta. Fez uma aparição discreta e, sem que a professora reparasse no semblante de vitória, pensou entrar e rapidamente encontrar um lugar disponível para se sentar. E se a professora lhe perguntasse por que razão se atrasara, só tinha receio de não ser compreendida por uma de duas razões: tanto podia achar esfarrapada a desculpa de ter acordado tarde, como convencer-se de que a verdadeira razão era outra e só por ter de se expressar na Língua de Shakespeare é que a aluna não sabia dizê-lo convenientemente, como convenientes não eram as notas que ela arrancava na disciplina, fruto de um fraco desempenho tanto nas provas orais como escritas.

Rita não era dotada da fleuma britânica que fazia os nativos oriundos daquelas ilhas encararem com indiferença os acontecimentos nefastos. Estava certa de que se a professora não compreendesse os motivos do atraso e, por conseguinte, não lhe retirasse a falta assinalada no livro de Ponto, esse facto funcionaria como um desincentivo para continuar a ir às aulas.

E por falar em estudar, do que ela gostaria efetivamente era de tirar um curso ligado à culinária, não vendo por isso nenhuma utilidade em aprender um Idioma cujas palavras se lhe enrolavam na boca como uma coisa pestilenta que, por muito que tentasse, não conseguia engolir. E o mesmo se passava com os argumentos dos professores de que aprender uma segunda Língua lhe poderia ser útil no exercício dessa função.

Rumando à sala de convívio, veio-lhe à memória uma lembrança da infância, quando sentiu, vindo da cantina, o cheiro tradicional dos fritos que lembrava o das rabanadas que a avó encomendava no Natal a uma vizinha que se dedicava todo o ano a cozinhar para fora. No caso da mãe, que era onde costumavam realizar a ceia da noite de Natal, ficava a casa a cheirar às especialidades caseiras que, noutras alturas festivas, só de lembrar faziam crescer água na boca. Contudo, no caso da mulher que as vendia, a começar na cozinha onde o ar não circulava, ele mal disfarçava o cheiro pestilento vindo de uma ribeira, que o vento quando estava do lado norte arrastava para os lados onde ela morava.

Se a avó e essa mulher se davam tão bem como a mãe insinuava, Rita não descortinava motivos para, fora das festividades de dezembro, não experimentarem outras das iguarias que ela tão bem confecionava. A experiente cozinheira gabava-se de ter, nos últimos vinte anos, criado tantas receitas de novos pratos que, passadas ao papel, justificavam o lançamento de um livro, com honras de destaque na televisão.

Ainda assim, com a ajuda de um sobrinho que era tipógrafo, dispôs-se a organizá-las numa espécie de compêndio culinário destinado a armazenar todo o seu saber. A cada uma deu um nome e por de baixo da listagem de ingredientes descreveu com tão grande detalhe o seu modo de preparação que, para imaginarmos o resultado final, nem precisaríamos da fotografia tirada pelo cunhado na máquina da afilhada, posta ao lado do comentário abonatório escrito pelos netos com a ajuda da mãe na correção dos erros ortográficos.

Desse cardápio memorável, que mais do que a concretização de um sonho, era para Rita uma aproximação a um futuro mais-que-perfeito, a avó de Rita não guardou nenhum exemplar que agora pudesse chegar-lhe às mãos. Mas isso não a impediu de sentir uma nostalgia desses dias que não podia ser obra do acaso, nem o fruto de um sonho fugaz de menina, que o tempo aos poucos vai desvanecendo na nossa memória ao ponto de substituí-lo por outro mais fácil de alcançar.

Num, que certo dia andou lá por casa esquecido, pegou com cuidado e a mãe deixou-a folheá-lo com a pontinha dos dedos, como se aquelas iguarias dispostas em pratos muito bonitos estivessem ainda quentes. E foi à medida que os via em contextos diferentes, que aprendeu que todas as situações da vida podiam ser celebradas à mesa, pois qualquer que fosse o motivo ou o dia escolhido para celebrar, havia sempre uma ementa que se adequava a ele.

Um dia, sem saber como nem por quê, a mulher deixou de aparecer lá por casa. Mas foi só até ao dia em que começou a surgir-lhe em sonhos. Não é que Rita vivesse por ela obcecada, mas talvez por ser ainda jovem, ainda mais impressionada do que quando a conheceu, ficou quando ninguém lhe soube explicar por quer razão ela desaparecera.

Nos primeiros dias, não se lhe notavam diferenças físicas e, mal podendo distinguir o sonho da realidade, a mulher aparecia-lhe muito bem vestida, de saia e blusa de seda ou vestido de noite comprido mas com um avental à cintura. Ao fim de umas semanas, Rita começou a notar-lhe uma mudança no rosto, com o aparecimento das primeiras rugas e, dali a uns meses, a transformação era tão grande que foi capaz de diagnosticar-lhe um problema de deformação dos ossos que haveria de impedi-la de continuar a amassar, na tijela, a farinha e os ovos com as mãos. Lá mais para o fim, viu-a sentada numa cama, agarrada a uma bengala que de nada lhe servia por já não se conseguir pôr sozinha de pé, embora mantivesse o ar confiante dos dias em que, felizmente, a saúde não lhe faltava.

Nesses sonhos em que tudo era possível, não causou estranheza a Rita ver que a senhora envelhecia, mas sim verificar que todas as iguarias que ela foi cozinhando para si ao longo desse tempo, mantinham um ar fresco e o aspeto delicioso de quando tinham sido acabadas de fazer.