Rita, anda ver o verão! – Cap.14

Rita passou ao largo de um grupo de alunos entre os quais, o mais novo de rabo sentado no selim de uma bicicleta de montanha, parecia concordar com os restantes em prol da ideia de um autarca de transformarem o recinto exterior da escola onde estacionavam os carros, num ringue para a prática de desportos radicais, como o Skate. Estugando o passo, Rita passou célere, acabando por não perceber se era de si que falavam no instante em que, de uma assentada,  todos se calaram e rodaram a cabeça para vê-la desfilar como se vestisse roupa de altíssima costura.

Embatendo na calçada, os tacões das botas reproduziam o timbre de um par de castanholas tocadas com frenesim, apesar de já ter sido forçada a diminuir o ritmo da passada em face do aumento da humidade relativa do ar, agora superior em relação ao das primeiras horas do dia, em que ela respirava com menor dificuldade.

Andando mais devagar, pôde recrear-se observando a tonalidade dos objetos que anteriormente lhe tinham passado despercebidos. Como se fosse à luz de um novo dia, constatou que a cidade evoluíra mais desde que saíra de casa, do que desde que, a fundo perdido, o país recebia fundos comunitários para o desenvolvimento regional. Os passeios pareciam mais largos, o piso das estradas em melhor estado sem precisar de arranjo e perfumava o ar um leve aroma a folhas de eucalipto queimadas, sendo que no caso de tratar-se de um Incêndio de grandes proporções seria completamente impossível determinar a sua origem, uma vez que de todos os lados passavam por si pessoas de rosto afogueado como se tivessem estado a ajudar os bombeiros a combatê-lo.

Por ação do sol que mantinha a temperatura elevada, nos corações dos transeuntes derretiam-se os resquícios do inverno, que só trouxera novidades a quem erradamente não contara que na tradicional estação da chuva o vento soprasse com rajadas fortes e abundantes.

Nas calçadas que Rita pisava, o astro-rei projetava a sombra de edifícios de linhas arrojadas, projetados para serem construídos com tantos pisos que a um leigo, com base no estudo da planta desenhada, seria impossível explicar como é que qualquer estrutura de aço e cimento podia suportar tanto peso.

Entretanto, uma brisa soprada da vertente sul tornara-se na melhor companheira de jornada da jovem, acamando no chão as folhas caídas das árvores, com a frescura de uma cama acabada de fazer. Os pulmões de Rita dilataram-se para ela inspirar quanto ar pôde sem perder uma pitada do que estava a acontecer à sua volta. Carros passavam velozmente na tentativa de não pararem na cor vermelha dos semáforos. Uma mulher quase a fez cair, ao empurra-la para atravessar a estrada antes de o sinal estar verde para os peões. Homens envoltos em roupas desadequadas ao calor, desapertavam o primeiro botão da camisa que não devia por onde começavam a despir-se, quando, inundados em suor, entravam em casa e se enfiavam na casa de banho para tomar um duche refrescante.

Chegada a um cruzamento, Rita rodopiou nos calcanhares noventa graus no sentido dos ponteiros do relógio, mas prontamente se arrependeu de não tê-lo feito no sentido inverso. Deu de caras com uma amiga da mãe, de quem gostava tanto como da sensação de estar a queixar-se à mãe da arrogância da professora de Inglês e sentir que estava a falar para o boneco, mas pensou que sempre seria preferível encontra-la ali do que no local mais remoto da Terra, onde não conheceria nenhum esconderijo seguro onde pudesse estar da conversa chata dela a salvo.

Só a vira dois ou três dias antes de a escola começar. Era de baixa estatura e vestia o género de roupas com que se enfeitava a avó, embora devesse pelo menos vinte anos do que ela. E talvez fosse da idade da mãe, mas parecia bastante mais nova do que ela, dando ares de ser mais liberal, porque pelo menos não se pôs, como ela costumava fazer em público, a dizer-lhe como se devia comportar.

Tinha os dedos delgados que se ajustavam como pinças à presa que viesse a escolher para falar de temas que não eram do seu interesse. Onde a mulher lhos vincou, para chamá-la pensando não ter sido vista, ficou no braço de Rita uma marca vermelha que degeneraria em nódoa negra, se mal chegasse a casa não aplicasse uma pomada apropriada para os hematomas. Os olhos cavados exprimiam um olhar de arrependimento que Rita atribuiu ao desânimo pela surpresa nefasta de tê-la encontrado, pois devia tê-la na conta de uma rapariga mal-educada. Era bem guarnecida de ancas e tinha pernas robustas e braços de atleta. Poisou um par de sacos que deviam conter enlatados ou objetos parecidos que, de encontro ao chão, emitiram um som metálico., como o de uma armadura a cair. De seguida, cumprimentou Rita desferindo-lhe dois beijos que surtiram o efeito de uma lâmina afiada a romper-lhe a rasgar-lhe a pele.

Antes de responder, acompanhado de um sorriso circunstancial, que em casa iam todos de boa saúde, muito obrigada, lembrou-se de que, se algum dia, tivessem falado a seu respeito e a mulher tivesse dado ouvidos às queixas da mãe a seu respeito, talvez julgando que ela era uma mentirosa, não acreditasse na veracidade da resposta.

Enquanto a senhora falava, a pouco e pouco Rita foi retomando a linha de pensamento cortada a meio pelo surgimento da mulher de cujo nome não se conseguia lembrar e substituindo o que ouvia pelos conselhos da mãe que recomendavam não ficar parada no meio da rua a falar com pessoas que mal conhecia. Não lhe apetecia ouvi-la justificar-se por estar a fazer na despensa uma reserva de comida enlatada superior à capacidade que ela e o marido tinham para comê-la nos próximos dezoito meses. Nem queria que expusesse problemas ainda maiores do que a dificuldade em arranjar espaço nas prateleiras onde coubessem tantas latas. Por fim, ouvi-la-ia queixar-se da vida, de que as olheiras eram facilmente explicáveis porque tinham origem nas noite mal dormidas, mas que as rugas no rosto ficavam a dever-se a problemas mais graves diante dos quais era insignificante esse que a atormentava das insónias.

Insatisfeita, Rita passou mais tempo de cara fechada, do que o céu no alto da torre da Serra da Estrela no pico do inverno. Despediu-se da mulher a modos de estar com pressa, mas não se livrou de que ela lhe desse dois beijos sonoros na face, só em parte abafados pelo barulho de ter de descolar os sacos para se poder aproximar.

Ia rua abaixo em direção ao supermercado para comprar o que a mãe pedira, quando se sentiu inebriada pelo cheiro a fritos de uma pastelaria famosa pela receita de pastéis de nata igual à dos que faziam deslocar turistas estrangeiros a Belém. Lembrava-lhe o paladar dos rissóis de camarão da mãe, que marcavam presença nas festas de aniversário lá em casa. Com mãos hábeis, era a mãe que amassava e estendia a massa onde o pai deitava uma porção de recheio do tamanho de uma avelã, depois coberta e cortada com o auxílio de uma chávena que lhe dava o formato de uma meia-lua. Ano após ano, a mãe repetia esta fórmula de sucesso que consistia em servir rissóis e croquetes de entrada, para abrir apetite aos filetes de pescada com arroz de ervilhas e salada de alface, que vinham a seguir, antes da travessa de arroz doce polvilhado de canela que traziam por último.

(Continua)