Rita, anda ver o verão! – Cap.24 (último capítulo)

(ÚLTIMO CAPÍTULO)

Quando retomou à sala, Rita encontrou a casa às escuras e em silêncio. Pé-ante-pé, deslocou-se para junto do sofá e acendeu o televisor com o som no mínimo, como se fosse preferível ler as legendas, a ter de ouvir as personagens do filme pronunciarem frases em Inglês que nem minimamente pareciam ter o significado do que aparecia escrito no rodapé do ecrã.

Rita adorava ver televisão na sala com o pai, enquanto toda a gente se dia deitar. Achando-lhe graça, ouvia-o lamuriar-se dos frequentes erros de casting na escolha dos atores das novelas e até dos locutores que apresentavam as notícias e pronunciavam mal as palavras tornando ininteligíveis as frases que liam, quase tirando-lhes o sentido como se as tivessem acabado a meio. Criticava os diretores dos canais, as grelhas de programação dos canais generalistas, que sem agradarem a gregos e a troianos iam no sentido de agradar à maioria dos telespetadores, ignorando a franja da população que representava a minoria e na qual ele estava inserido. Mal comparado, no campo político seria como se um candidato presidencial apenas tentasse captar o benefício do eleitorado que votava à Esquerda ou à Direita, ignorando os poucos que alinhavam ao Centro e por si só eram insuficientes para fazê-lo ganhar as eleições logo à primeira volta.

Na tv por cabo, que era paga, é que havia um sem-número de programas temáticos. Nos dedicados à culinária, chefes e aprendizes com cursos tirados à pressa, ensinavam uma vasta audiência a tirar o melhor proveito dos ingredientes dos produtos que tinham à mão. No caso dos de viagem que mostravam destinos de férias paradisíacos, através de excursões em África ou de roteiros por países longínquos na Ásia, viajava-se ao interior de países tão remotos que nas ruas de algumas cidades, quase sem movimento de carros a registar, tanto podiam os veículos circular em contramão à vontade sem provocar risco de acidente, como os transeuntes atravessar sem perigo fora das passadeiras, que não havia o perigo se derem atropelados. Nalgumas terras, onde a escassez de chuva fazia com que os produtos hortícolas crescessem mirrados, as mulheres eram forçadas a improvisar, e se fosse preciso cozinhavam feijões à maneira do que fariam se tivessem umas belas favas ou raízes de plantas como se fossem molhos de espinafres acabados de apanhar na horta. Em contrapartida, nas zonas irrigadas, viam-se imensos lençóis de água e rios desviados para tanques de cimento onde, às dezenas e encharcadas no suor que lhes escorria das entranhas, num ato de amor aos maridos, as mulheres se entregavam à tarefa de esfregar-lhes as calças surradas, as meias puídas e as cuecas rotas na braguilha.

Um dia, denotando uma surpresa ainda maior do que se presenciasse no circo um mágico tirando um urso pardo de uma cartola, Rita encontrou imagens gravadas numa cassete em VHS, da festa de Natal de empresa do ano em que a mãe e o pai se conheceram.

Era no enormíssimo salão de um restaurante alugado para esse efeito, pela firma de exportação de material elétrico em que ele trabalhava e juntou centenas de convidados. Ela vinha majestosa num vestido de noite que arrastava até aos pés e ele, vestido a rigor, envergava uma farpela encimada com laçarote, como se a festa fosse exclusivamente em sua homenagem e não para recordar a todos os funcionários da firma que o patrão estava grato pelos bons resultados de vendas obtidos ao longo do ano.

Trouxe-lhe essa recordação, uma cena do filme a que estava a assistir, soluçante por desconhecer ainda a forma como ia desenrolar-se o enredo até final. Narrava a história do amor impossível entre um rapaz e uma rapariga que descendiam de famílias rivais, cujo ódio remontava ao tempo dos bisavôs de ambos. Dois jovens atores britânicos, interpretavam ambos os papéis de protagonista, numa adaptação cinematográfica da obra na qual W. Shakespeare não se atreveu a desdramatizar os factos, colocando no papel dos pais a culpa de muitas relações entre os casais não darem certo.

Juntos quando se abraçavam trocando beijos, preenchiam o ecrã plasma de trinta e duas polegadas da sala, deixando pouquíssimo espaço para se verem as outras personagens da trama. Nesta recente versão, rodada em noventa dias a partir de uma adaptação livre da célebre peça levada ao palco em finais do século XVI, a ação desenrolava-se em Dublin, uns anos antes da fuga dos Protestantes às consequências da revolução irlandesa, que haveria de fixá-los naquela cidade e torná-los maioritários em relação ao número de Católicos. Embora ao começo a história não fugisse ao guião escrito pelo dramaturgo inglês, nesta adaptação a dupla romântica acabava por fugir e  viver feliz para sempre, escapando definitivamente das garras de uma antiga namorada de Romeu que os chantageava, sacando algum dinheiro, sob a ameaça de revelar aos pais de ambos que eles namoravam às escondidas.

A lua subia no céu quando Rita pressentiu as costas afundarem-se no sofá, tornando inútil o esforço de continuar a resistir ao sono, de costas direitas e olhos mantidos abertos à custa da expetativa de ver alterado o curso da história e poder assistir a um final consentâneo com o original. Achando que passava da hora de ir dormir, constatou que acabara por adormecer, tendo-se deixado embalar nos braços de Morfeu.

A roupa que a mãe passara a ferro depois do jantar, estava arrumada numa cesta de vime sobre a mesa. Estava catalogada por categorias, e para a mãe havia três distintas: a roupa de vestir, os atoalhados de casa de banho e as fronhas e lençóis das camas. Dentro de cada categoria, arrumada por camadas, dividia-se em género e em número. Do género masculino a roupa do pai e do feminino as que iam diretamente para o roupeiro da mãe e para as gavetas das três filhas, mas do género neutro era a que tanto ele como elas usavam em comum, como por exemplo alguma t-shirt que lhes servisse ou calção.

De número singular era um sobretudo que o pai usava no inverno e um casaco a imitar o vison da mãe, mas no plural eram as muitas cuecas, meias e camisolas interiores que tinham e ela era obrigada a lavar todas as semanas às carradas.

Saindo da sala, Rita foi novamente enfiar-se no quarto. Roberta dormia profundamente, abraçada ao seu peluche preferido, enquanto Cleópatra, a gata siamesa, ronronava enroscada noutro ainda maior do que esse deitado aos pés da cama, que já estava demasiado apertada para caberem dentro dela mais bonecos. Sem falarem, viu pela fresta da porta do quarto que permanecia meio encostada, que Renata manejava o telemóvel, continuando a dedilhar mensagens ao ritmo das que recebia do namorado, o qual que devia aguardar ansiosamente que ela marcasse o número do telemóvel e pudessem esclarecer as dúvidas de um amor que deveria uni-los em vez de afastá-los.

Entrando no quarto às escuras, Rita deitou-se na cama e ficou à espera que o sono voltasse pela porta que somente deixara entreaberta. Pela fresta dos estores, uma réstia de luar vinha iluminar-lhe o rosto, exatamente no lugar onde o sol, mal despontasse, haveria de voltar a pousar-lhe no rosto, como nesse dia, e despertá-la para um novo dia.

FINAL DA HISTÓRIA