Rita, anda ver o verão! – Cap.4

Era no sentido ascendente da rua, ou seja, no de quem avançava da esquerda para a direita, que se via o maior número de viaturas em circulação. Ao longo da faixa de rodagem, sobre um tapete de alcatrão a espaços remendado, velocípedes, viaturas ligeiras e camiões cruzavam as diversas passadeiras destinadas à travessia dos peões, formando, a partir das ruas periféricas em direção ao centro da cidade, longas filas de trânsito que pareciam, vistas do alto, as pontas soltas de um emaranhado de fios que ninguém conseguiria desembaraçar, aqui e acolá com nós que eram os acidentes ainda por resolver e imensos cruzamentos com semáforos no vermelho que em nenhuma direção deixavam os veículos avançar.

Rita optou por seguir a pé, em vez de se enfiar no primeiro autocarro que surgisse vindo de uma paragem onde acabara de encher e, num breve instante, de costas voltadas para o prédio onde morava como se o renegasse ou o traçado neoclássico da fachada lhe dissesse tão pouco que fosse impossível gostar dele, redesenhou a cidade, pondo-se a imaginar qual seria o traçado ideal das ruas, praças e avenidas que se preparava para percorrer, por forma a chegar no menor tempo e com o menor esforço possível à escola.

Como um mero exercício de pensamento, abriu caminho à sua frente, deslocando para a esquerda um bloco de edifícios de pequenos apartamentos destinados a alugar para transformar em escritórios, fazendo desaparecer um quarteirão de casas de habitação e trazendo para perto de casa as lojas de roupa da sua preferência, suprimindo, nem que fosse provisoriamente, o tráfego das ruas que tinha de atravessar, obrigando todas as viaturas a um desvio de largas centenas de metros, só para não ter de esperar pelo sinal verde nas passadeiras que davam passagem aos peões.

Habituada a percorrê-las desde tenra idade com o pai, conhecia, da maior à mais pequena, todas os becos, ruas e ruelas do bairro onde morava. Tão bem como à palma da mão, em cujas linhas ela não acreditava que alguém lhe tivesse traçado o destino. Pouco dada ao esoterismo, acreditava piamente em que nem a leitura das cartas do Tarô, feita por uma mestra, lhe indicaria com maior exatidão do que as placas que naquele momento apontavam na direção do bairro do Arco do Cego, o caminho que devia seguir até ao seu destino.

Criada em Lisboa no bulício das avenidas novas, Rita apreciava a pacatez deste bairro, no interior do qual, embora se situasse nas traseiras do edifício-sede do maior Banco nacional, se encontrava num largo sobranceiro a uma zona de estacionamento, a escola do Ensino Básico de D. Filipa de Lencastre, rainha consorte de Portugal e mãe de um par de infantes que lhe deram o orgulho de sentir-se como uma imperatriz.

Quase que esta escola tinha sido adotada pela família como uma segunda casa. Por já lá ter estudado Renata, por lá estudarem ainda Rita, de dezassete anos e Roberta e por se ter iniciado lá há muitos anos a dar aulas de Português, a própria mãe das três, em substituição de uma professora que repentinamente entrou de Baixa ao trabalho por motivo de doença e nunca mais apareceu.

Uma profusão de aromas silvestres fê-la demorar-se à passagem pela Perfumaria da Moda no coração da avenida de Roma, para receber da promotora baixinha que esticava o braço aos transeuntes que passavam, uma tira de papel embebida num perfume que jamais seria o seu. E nem era pelo preço. Detestava o odor adocicado a flores, que em devido tempo não deviam ter apanhado água e desconfiou do bom gosto da empregada que lhe garantiu ser muito bom porque era aquela a sua fragrância favorita, quando reparou na figura dela de saia que não combinava com a blusa e sapatos que não iam bem com nenhum dos dois.

Naquela parte da avenida, que era desprovida de árvores, Rita teve de caminhar de cabeça descoberta sob os auspícios do sol. Arrependeu-se de não ter retirado do cabide onde estavam pendurados os casacos, o chapéu de lona verde que certo dia a mãe se arrependera de lhe ter comprado numa feira, assim meio-arrependida de ter recusado dar à filha o telemóvel que ela preferiria ter levado para casa. Por causa do calor que começava a sentir no pescoço, com a agilidade que lhe era conhecida, Rita apertou numa estreita faixa de cabelo entre as mãos, um rabo-de-cavalo que prendeu com um elástico que tinha prendido ao pulso. De rosto ofegante, a sua imagem lembrava uma amazona que tinha acabado de desmontar um cavalo a galope, mas se quiséssemos uma comparação, o seu novo penteado com a extremidade a bater-lhe a meio das costas era muito mais belo do que a cauda de qualquer animal. De efeito arredondado, Rita usava um corte de cabelo que uns anos antes fizera furor entre as adolescentes, mas para já era o que a mãe achava que ia melhor num rosto de jovial sem idade definida, onde predominavam dois olhos verdes resplandecentes que, se não fossem da cor de preciosas esmeraldas, poderiam confundir-se com brilhantes de tal forma espicaçavam a curiosidade alheia.

Quando se aproximou do cruzamento que entroncava com a avenida de João XXI, o nome do até agora único Papa português, Rita sentiu o desejo de começar a correr. Estugou o passo, evitando afundar o pé num dos buracos do passeio que naquele local se abriam como crateras à sua frente, obrigando os transeuntes a saltarem para a berma da estrada para poderem passar, colocando em risco a sua integridade física.

Embora desalentada, Rita era contudo da opinião de que seria preferível encarar o tacão partido de uma bota, do que a cara enfurecida da professora de Inglês que, por mera embirração, era famosa por no ano anterior ter crivado de faltas a caderneta de uma das melhores alunas da turma que nunca chegava mais do que cinco minutos atrasada.

Subitamente, a marcha de Rita foi interrompida para ver passar uma multidão em fúria, que avançava na direção do largo da Praça de Londres onde ficava o edifício de ais de uma dezena de andares do Ministério Trabalho. O grupo compacto era constituído, maioritariamente, por homens que empunhavam cartazes e estendiam à altura do peito faixas de pano que traziam pintadas palavras de ordem e frases de cariz reivindicativo. Sob o lema da estrutura sindical que marcara aquela jornada de luta, os homens e mulheres ali representados, gritavam em uníssono mostrando fotografias de alguns ministros do Governo em funções e caricaturas do rosto do atual Primeiro-ministro, que eram a seu ver outra forma de realçar os seus defeitos e exibi-los a toda a gente.

Para não ser engolida pela onda de protesto sem ter de voltar para trás ou trepar a um poste de iluminação da via pública, Rita, que não era nada dada a escaladas por causa das vertigens e do medo que sentia das alturas, desobedeceu às recomendações da mãe, e enfiou-se à pressa no quiosque do senhor que vendia os jornais, no que foi acompanhada por outras pessoas que ela olhava com crescente ansiedade, na esperança de que alguma delas finalmente a elucidasse sobre o que estava a acontecer.

Enquanto escutava o que os manifestantes diziam, calculava a distância a que estaria dos elementos da última fila, que diligentemente repetiam as frases que ouviam dos primeiros, como se fossem o eco desses que seguiam na frente.

(Continua na próxima semana)