Rita, anda ver o verão! – Cap.5

Pensando não dar por perdido o tempo que o grupo de manifestantes, tão barulhento e animado como se o compusessem figuras de proa de um corso carnavalesco, demorasse a passar, Rita entreteve-se a ler as capas de revista que estavam alinhadas lado-a-lado com os jornais de enormes paragonas acompanhadas de fotografias, quase todas dedicadas à frágil situação económica do país.

Resignada porque ainda teria de esperar um pouco até passar o último manifestante empunhando uma bandeira e assim poder retomar a marcha, a jovem estudante desviou o foco no que estava a ler e semicerrou os olhos, dando por si a embarcar numa viagem de sonho que a levaria ao interior das casas dos famosos que se habituara a ver na televisão e de cujas vidas sabia tudo pelo que lia e via nas entrevistas que vinham sempre ilustradas com imagens dos palacetes onde moravam.

Em comum com os leitores anónimos que admiravam tudo o que eles faziam, as caras mais conhecidas do mundo artístico ou do jet-set tinham uma verdadeira paixão por moradias com amplas varandas viradas para o mar ou para montanha, decoradas com um mobiliário confortável que prolongava o desejo de permanecer nelas sentado a ver a paisagem. Mas não só. Partilhavam também o gosto pelos objetos decorativos de luxo, as pratas que punham a enfeitar os móveis e os quadros na parede, que, na verdade, tanto uns como outros até podiam admirar mas só os mais ricos é que estavam em condições de comprar.

Na sua maneira singela de pensar, Rita considerava que todos eles podiam sentir-se bem e, sem querer trocá-la pela de ninguém, apreciar mais do que ninguém a vida que levavam. Todavia, para si nada se podia comparar ao prazer que lhe dava entrar e sair, nem que fosse a fingir, daquelas mansões, para onde sabia que só nunca tinha sido convidada na vida real, porque nem uns nem outros desconfiavam de como era divertida e, em seu redor, punha todas as pessoas bem-dispostas.

Quando a rua retomou o aspeto da normalidade, sorridente, Rita despediu-se do dono do quiosque com um brevíssimo aceno de mão e foi-se embora. Rodou nos calcanhares, como se fosse um militar na parada a quem tivessem dado licença para ir no fim-de-semana a casa e virou costas, desculpando-se com a falta de tempo para se pôr novamente a caminhar, como se não fosse essa característica de não conseguir estar muito tempo parada no mesmo lugar própria das pessoas da sua idade.

Desde sempre se recordava do quiosque com o senhor Aníbal lá dentro, um homem de idade avançada que dispensava aos clientes um sorriso domingueiro e, para agradar-lhes ainda mais, parecia sempre disposto a atender todos ao mesmo tempo.

Era um sujeito gordo e por isso, mal cabia num espaço tão pequeno, o qual podia resumir-se a um cubículo sem janelas, com uma única passagem para entrar e sair, que cobria uma área de dois metros de largura por outros dois de um amontoado de livros que ele se esfarrapava por preservar como se do bom estado de conversação daquelas obras que ninguém lia dependesse a própria existência dele enquanto ser-vivo.

Tinha um par de olhos castanhos engalfinhados e dedos grossos encavalitados das artroses, sobretudo o indicador e o médio da mão direita de há anos folhear jornais e, ao final do dia, contá-los para devolver à precedência os exemplares que, desde há muito, ninguém comprava, porque a quem queria saber o que se passava em Portugal ou no estrangeiro, bastava ficarem à conversa com ele uns minutos para se inteirarem das notícias em primeira mão e assim não terem necessidade de ler nenhuma no papel. Apesar das pernas finas, era mais baixo do que supunha Rita inicialmente. Antes de tê-lo visto pela primeira vez de pé a arrumar quinquilharia sobre uma resma de jornais, ela passava e via-o sempre sentado, à exceção de quando passava com a mãe e ele gentilmente se levantava do banquinho para cumprimentá-la, retirando o boné que deixava à mostra uma calvície acentuada. Rita é que cheia de vergonha se apressava a olhar para o lado e não tinha tempo de tirar-lhe as medidas.

Aníbal nascera em Moçambique e por lá pensara em passar o resto da vida, mas mais cedo teria rumado a Portugal se tivesse podido prever o advento da guerra em Angola, que abalaria seriamente a paz naquele país ou tivesse travado antes conhecimento com uma belíssima mestiça natural da província da Beira que sonhava viajar para a metrópole e ainda, meses antes de casarem, estagiava num escritório de advocacia em Lourenço Marques, ao mesmo tempo que terminava um curso de estudos avançados na Escola Comercial.

Após o falecimento da esposa, vítima colateral de uma explosão que numa rua de grande movimento, Aníbal chegou a Portugal num dos primeiros navios de retornados que atracaram em Alcântara. Viúvo e sem grandes perspetivas de futuro, no cais, à espera dos homens, mulheres e crianças que vinham sem meio de sustento, depararam no interior de um contentor com um gabinete oficial que as autoridades haviam montado para tratar de papelada, onde eram distribuídas senhas de refeição e davam a indicação às famílias dos sítios onde iam ficar alojadas. A si, deram teto numa pensão de quinta categoria, bem como um pequeno montante com o qual se veio a estabelecer dali a umas semanas, porque já tinha decidido que preferia ser patrão de si mesmo e cumprir as regras que ele próprio estabelecesse, do que correr o risco de ter a mandar em si e a controlar-lhe os horários de entrada e saída, pessoas como as do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras da época, que lhe recusaram abrigo numa casa maior e um pouco mais de dinheiro para que pudesse abrir em nome próprio um negócio melhor do que um quiosque onde só podia vender revistas e jornais.

Em África, era um alfarrabista conhecido nos círculos internos da resistência pelas reuniões secretíssimas dadas em casa na presença de antigos opositores ao governador da região e até ao regime de Salazar. Ainda marcado pelo desgosto da perda precoce da mulher numa explosão que o encheu de estilhaços nas costas e obrigou a ficar internado em risco de vida durante dois meses num hospital, Aníbal não passava nessa época de um fraco contador de histórias passadas em Lisboa em tempo de guerra, que envolviam a PIDE e acabavam quase sempre em perseguições rocambolescas, como nos livros polícias cujo prefácio ninguém assinava ou outros que, só porque a ação se passava nalgum regime ditatorial, milagrosamente escapavam ao cunho dos censores.

Aníbal contava nessa altura o dobro da idade da mãe de Rita, cuja carreira de professora no ensino público entrava numa fase de ascensão meteórica. Nunca se tinham visto, mas Aníbal já tinha conhecimento da beleza dela, por intermédio de uma colega com quem na altura namoriscava. Casada com o atual pai das filhas e respeitada pelos colegas do corpo docente, a mãe de Rita era uma fiel cumpridora dos deveres conjugais que diariamente a faziam chegar a casa antes das seis, nunca dando sequer a entender que desejasse namorar outro homem.

O que não paravam de chegar aos seus ouvidos, eram rumores de que o namorado da colega, por ter o eterno caráter de um D. Juan, lhe era infiel e não considerava prova suficiente para achar que era amado, o facto de, para ficarem juntos, ela ter abandonado o marido. As duas professoras, de aproximadamente da mesma idade, eram suficientemente próximas uma da outra, no círculo escolar, para se considerarem amigas, porém e embora lecionassem praticamente no mesmo horário, do portão de saída da escola para fora, cada qual tinha o seu círculo de amigos e na ausência de qualquer assunto profissional que tivessem de tratar em conjunto, raramente se viam. Só por isso é que Aníbal não via mal em que pudesse seduzi-la e namorá-las sem que nem uma nem outra soubessem, uma vez que, a menos que fossem contar-lhes, não havia forma de poderem descobrir.

Descobriu por acaso que ela morava não muito longe do quiosque, quando num belo dia a viu passar de braço dado com o marido, acompanhada das filhas e, desde então, com a recordação viva dessa paixão na memória, não mais deixou de prestar atenção a todos os seus passos e sempre que ela passava, largava imediatamente a tarefa que tivesse em mãos naquele momento, a fim de cumprimentá-la mais demoradamente do que fazia com as mulheres dos outros seus clientes, fosse ou não alguma delas casada com um dos seus melhores amigos.

Contudo, se desde muito cedo ele lhe declarou que ao cabo de tantos anos tinha a intenção de namorá-la, mais rapidamente ainda ela passou a ignorá-lo. Apanhada de surpresa como no turbilhão de uma tempestade, sob o efeito de sentir-se alvo de uma paixão de que julgava que ele já estivesse curado, expondo-lhe as suas razões, a mãe de Rita começou por tentar dissuadi-lo de, sempre que lhe apetecia tomar um café, endereçar-lhe um convite que era prontamente declinado.

Vendo que as palavras não surtiam efeito, passou a recusar os ramos de flores e, por intermédio da filha, a devolver os presentes dentro de caixinhas que antes de serem abertas iam parar ao balde do lixo. Mais tarde proibiu as filhas de se aproximarem do quiosque, deixando ela própria, a fim de dar o exemplo, de passar por lá ou nas suas imediações, visando eliminar qualquer esperança que nele pudesse permanecer de virem a manter qualquer espécie de relacionamento.

Pensando que o mal estaria em que os objetos que mandava não tinham valor, Aníbal substituiu as bugigangas que o próprio empacotava e enlaçava com uma fita de cetim a preceito, por versos reveladores do seu verdadeiro estado de espírito, escritos em cartões iguais aos que se presenteia a cara-metade no dia de S. Valentim.

Assim, melhor seria que ele mantivesse no seu lugar, acotovelados a um canto entre os volumes dos romances de capa-e-espada com final feliz feito de encomenda ao autor e as pastas de arquivo com recortes de notícias que não se percebiam se eram antigas porque não é de hoje que se fala em crise e flagelos como o desemprego, as peças de faqueiro que sobravam, os copos de falso cristal desirmanados ou os serviços incompletos de chá de China, em que ninguém pegava e oferecido à pessoa amada jamais causariam tão boa impressão como uma ode poética ou um soneto inspirado na lírica de camões.

E não havia melhor estímulo para começar a escrever do que esse de pensar que na companhia da mãe de Rita, teria a seu lado a mulher perfeita. É que, começando por avaliar a barriga do marido, ela tanto devia ser uma excelente cozinheira, como uma mãe exemplar, se acabasse a apreciar a esmerada educação que dera às filhas.

(Continua na próxima semana)