Rua do Inferno, 666 – Laura Paiva

Na Rua do Inferno (nome fictício)  existe o número 666 – o número da Besta, do Diabo, do Chifrudo, do Demónio, de Satanás, de Lúcifer, de Belzebu… Há mesmo quem diga, também, do Dragão mas por questões de outra ordem, não vou considerar esse sinónimo!

A numeração de polícia, nesta rua, foi elaborada por alguém com um sentido de humor muito peculiar.
O número 666 é real – trata-se de um portão, de acesso a uma garagem! Existe mesmo e, sempre que lá passo, procuro com o olhar aquele portão. Está sempre fechado, nunca o vi aberto e talvez por isso dou por mim a imaginar que é ali o escritório do Diabo!

Fui lá e parei ao portão. Quero entrar. Respiro fundo, ganho coragem e bato uma única vez…
Sou recebida por uma recepcionista, mulher nova, jeitosa e vestida de lingerie vermelha, que pergunta o meu nome enquanto me convida a entrar, fechando o portão de imediato. Conduz-me por um túnel iluminado apenas pela chamas das muitas tochas  que ornamentam as paredes.
À nossa passagem, as sombras que dançam no chão têm a forma de pequenos diabinhos, empunhando tridentes. Cantam e riem, num corrida infernal, acompanhando-nos.  Tento não os calcar, ora parando ora saltando – são tão engraçados.

O túnel desemboca numa grande sala onde o vermelho predomina. Há lareiras acesas a toda a volta, o que confere um ar agradavelmente quente e alaranjado.
Por todo o lado homens e mulheres esculturais e semi-nús, serenos e felizes –  Aguardam pela sua vez – informa-me a recepcionista!
Ao centro, uma gigantesca mesa, repleta de iguarias.
Reparo, agora, que as sombras que projectamos deixaram-se de ser os pequenos diabinhos – são sombras reais.

Sou guiada em direcção a uma grande porta que, aberta de par em par, revela uma silhueta cornuda pelo contra-luz de uma enorme fogueira. O ambiente é agora de penumbra e lentamente os meus olhos conseguem adaptar-se. Começo por perceber que há uma enorme secretária sobra a qual existem duas grandes pilhas de papéis. Atrás desse secretária, o próprio Demo.

– Curiosa, a menina…
– Sim, confesso que sim! Não poderia ser coincidência o número afixado lá fora.
– Ah Ah Ah… Se toda a gente reparasse nisso, eu teria de providenciar visitas guiadas.
– Talvez não fosse má ideia. Afinal só nos explicam como será o Paraíso. Para escolher, deveriamos ter o direito de conhecer todas as opções…
– Mas quem lhe disse que podem escolher? Quem lhe disse que o meu reduto é o que viu aqui?
– Bem… na verdade, ninguém!
– Ora diga lá o seu nome…
– Laura, o meu nome é Laura…
– E a menina pensa, então, que vai para o Paraíso! Pois desengane-se! O seu nome consta aqui na pilha dos “Decido depois que estes são difíceis”…
– Bem, e o depois será quando?
– A data? Ora deixe-me ver… ainda está em branco! Veja bem em que se mete daqui até lá. Não me dê motivos…
– E eu sou difícil porquê, posso saber?
– Bem, isso já era ficar a saber tanto como eu ah ah
ah

Aquele “ah ah ah” ainda ecoava na minha cabeça quando, de repente dei por mim de volta ao ponto inicial – na rua, junto ao portão número 666 da Rua do Inferno.
“Eu deveria ter pegado fogo aquela pilha de papeis” penso enquanto prossigo o meu caminho… sem olhar para trás!

 

Crónica de Laura Paiva
O mundo por estes olhos