Sandro decide morrer – André Marques

Um jovem de 18 anos foi brutalmente assassinado com um tiro na cabeça na alvorada desta quinta-feira, 03 de Outubro de 2012, frente a uma conhecida discoteca de Lisboa. Os dois autores do crime, de 22 e 25 anos, residentes na zona de Benfica, já foram detidos pela polícia judiciária.”

Os duvidosos, felizmente, encontram-se encarcerados. Felizmente. Longe do oxigénio humano, perto do lixo abundante. Assim estão eles. E assim estou eu; morta. Capturada por um sentimento absurdo. Capturada por um sentimento não planeado. O sentimento de mãe. Eu.

Sandro. Sonhava com medicina. Aproveitava-se dos sonhos. Fazia deles o que queria. No entanto, sabia oferecer a vida. Voraz. Sensual. Puro. Eu não o conhecia na totalidade. O meu filho, evidentemente. Uma mãe nunca averigua um filho na totalidade. Se assim fosse, não teria graça. A descoberta é um ótimo investimento. E pode ser duradouro. O Sandro era dinâmico. Líder. Era, ou é. Não sei. Estou confusa. Mas mais do que estar vaga, estou abafada, arruinada, abatida. Como já o disse. O Sandro. Morreu. E era meu filho.

Quero ser um exemplo para outras famílias. Quero que saibam que quando se comete um crime, paga-se por ele. Mais tarde ou mais cedo. Como aconteceu aos traiçoeiros que acabaram com a vida do meu Sandro. À queima roupa. Como se ele não tivesse pais. Como se ele não tivesse amigos. Como se ele não tivesse uma vida para justificar. E eu choro de novo. Todos os dias reinvento o choro. Habituei-me a sofrer. O pesar torna-se um hábito.

O quarto. No quarto do meu Sandro mantém-se tudo intacto. Tudo no mesmo lugar. O tapete desalinhado. A roupa sobre a cama, dobrada. As meias sujas debaixo da cama. Os relógios espalhados na mesinha de cabeceira. Na escrivaninha o lixo continua amontoado. Como só ele sabia desarrumar. E eu gostava tanto; a desordem era um sinal claro da sua presença, quer física, quer psicológica. Todos os dias desfaço a cama e volto a fazê-la. Paranoica que estou. Assisto de boca fechada, que é quando obtenho as melhores palmas. Gostava e gosto. Deste espetáculo negro. Porque o tempo não apaga as memórias. Porque o tempo não amachuca as lembranças. Porque o tempo não tem força suficiente para derrubar uma vida. Mas, apesar da suposta vida normal que tento levar, a justiça não traz de volta os sonhos do meu filho. O sonho de se tornar pai. O sonho de desfrutar de uma casa com vista para o amor. O sonho de uma vida para além das nuvens feitas de nada. E eu, estúpida, insistia em ser avó, conhecer uma miúda que o degustasse em condições, proporcionar-lhe uma vida minimamente importante. As merdas todas que uma mãe quer para si. Às vezes à força. Outras não.

Deus quis levar o meu Sandro. E conseguiu. Malandro. Essa coisa parva em que acreditamos. Graças à sua brincadeira, herdei uma dor que não cicatriza. Que não desvanece. Possuo o rosto que traz à lembrança o sofrimento de ter intimidade com o luto. Fazemos amor todas as noites. Deito o meu marido no sofá e entrego-me ao luto. Sem orgasmos. Sem nada. E no final ainda grito.

Todas as manhãs, quando apanho o metro para o trabalho, ligo-lhe para o telemóvel. Desde que partiu nunca  mais me atendeu. Deve andar ocupado, coitado. Mas mesmo sem ouvir qualquer tipo de voz do outro lado, pergunto se está tudo bem, se precisa de alguma coisa, se quer que deixe o almoço no frigorífico ou passe na Bertrand para comprar mais um daqueles livros do Fernando Pessoa. Ou do Eça. Antes de desligar, recito-lhe uma frase imponente. Daquelas fortes, que não entendo nada, mas que transmitem alguma coisa. Acho eu. Do pessoa, com amor.

O perfeito não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso podemos amar o santo mas não podemos amar a Deus.”

É sempre por volta das dez da manhã que me lembro disto. Prática frequente. E choro, outra vez. A seguir, recordo-me também da viajem que fiz a Roma. No dia que o enterrei. Fiz a mala e desapareci por cinco dias. Visitei o Coliseu e o Arco de Constantino. Deliciei-me ao visualizar o Vaticano e ainda comprei um livro do Miguel Sousa Tavares. Estava a um preço incrível. O meu marido, João, decidiu ficar por Lisboa. Sou da opinião de que cada um sofre à sua maneira, e como o Sandro era adotado, para o João não fazia qualquer tipo de sentido exercer o luto. Respeitei. E respeito. Mas levei algum tempo a compreendê-lo. Até porque para mim não existe o filho biológico e o filho emprestado. Existe o filho, e pronto. O sangue que corre é irrelevante.

Faz amanhã um ano que o Sandro viajou. E eu ainda não consigo expressar-me corretamente. Falo algumas coisas, mas nada de relevante, ou concreto, ou certo, ou direito. Foi tudo tão repentino e violento, ainda hoje parece mentira. Parece e é. A mim não me tiram as coisas assim tão facilmente. Isso é que era bom. Nos entretantos, sinto falta do seu sorriso, do seu abraço, da sua voz, do seu cheiro. Mesmo o do tabaco. Sinto falta de nunca sentir falta de amor.

Os brincos de princesa percorrem sempre o mesmo caminho. Cansados. Exaustos. Nascem nos olhos, falecem nos lábios. Sempre que o visito, para obter a confirmação do enterro. Escapou-me entre os dedos. E de que maneira. Assim como a vida me está a escapar. Também. À semelhança. Quem me dera que tivesse sido a minha vida. Mas não, a Natureza teve a idiota ideia de contrariar as coisas. Tem a mania que é boa.

Deixei de fazer Bacalhau com Natas todas as quartas feiras. E às vezes às quintas. O João, apesar de tudo, também deixou de comer o tão apreciado prato. O prato do meu filho. O favorito. O eleito. Tive de o matar. O prato, claro.

Convivo com a dor. Houve um dia que se foi embora. A dor. Tão parva que sou; apenas fechei os olhos para dormir. Achei mesmo que tivesse ido embora. Esqueço-me que a dormir não sofro. Ou se sofro, não me lembro. Prefiro assim. Na vida, por vezes, temos de ter a capacidade suficiente para fingir algo que nos fere ou desilude. Estar bem quando na realidade existe apenas o farrapo. Aprendi rápido. O gesto da raposa. Convivo com o medo. Vivemos para ser felizes, mas, entretanto, acredito severamente que Deus criou-nos para nos presentear com este tipo de infortúnios, para absorvermos as experiências sem nunca perder o salto. A vida tem sempre um presentinho envenenado reservado para nós. A morte do meu filho foi o meu, dado de bandeja, sem se quer o ter pedido. Funciona. Não exercemos qualquer tipo de rogo, mas ele acaba sempre por nos chegar às mãos. Inevitável.

Relaxo. Preciso mesmo de relaxar. Ao mesmo tempo que choro. Outra vez. Choro pela paz. Choro pela voz. Sei que se encontra bem. Tenho esse pressentimento. E o sentimento vago de uma mãe nunca se engana. Sei que se encontra amparado por Deus. Aos poucos, aceito que o meu filho tenha nascido para ficar pouco tempo entre nós. Cumpriu a sua missão. Viveu intensamente. Deve estar na  ilha de Tristan da Cunha. Simplesmente o lugar mais longe do mundo. A viver da pesca, talvez. Tornou-se um belo rapagão, contou-me uma estrela. Um rapagão que enfrenta ventos descontrolados. Qualquer dia escrevo-lhe uma carta. Essa mesma estrela contou-me que a correspondência é entregue por um navio de ronda anual. Mas para isso, tenho de ir até à ilha de Santa Helena. É apenas mais um motivo para viajar. Afinal, por um filho, qualquer mãe é capaz de mover o mundo. Com um dedo. Dois dedos. Os necessários até conseguir virar tudo ao contrário. O mundo.
O tempo corrige todas as cicatrizes desgostosas que o amor provoca, mas jamais apagará do pensamento alguém que nos fez bem e nos acompanha em cada passo que damos. E o meu passo és tu, Sandro.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
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