O Seixal alive primavera surf fest super rock super pop é ótimus, meo!

Enquanto em Portugal não começa a época dos festivais de verão, quase todos patrocinados pelos operadores rivais da tv cabo ou pelas marcas mais consumidas de cerveja, experimentei seguir o conselho de uma amiga minha e ir ao primeiro destes eventos da região de Lisboa que começa e acaba na primavera, o Festival da Praia Fluvial do Seixal, que dura três dias e, nesta segunda edição, contava com a participação da banda de garagem onde toca um rapaz que é meu vizinho.

Chamavam-se Naftalina, que devia ser uma palavra inglesa com um significado muito diferente do nosso, porque cantavam sempre nessa língua a que foram buscar a inspiração para compor as letras das canções, assim como os quatro nomes com que passaram a ser conhecidos de terem atuado pela primeira vez ao vivo, num recinto fechado para mais de vinte pessoas.

Havia o Fred, que era diminutivo de Frederico mas neste caso se aplicava ao João, que era vocalista e fã do ex-líder dos Queen. O Charlie Brown, personagem de banda-desenhada dos livros aos quadradinhos que o Paulo, que se sentava na bateria, colecionava desde os oito anos. O Thor, por causa das aventuras que o viola-baixo Jorge sonhava ter vivido na pele de um super-herói e, finalmente, o Kiss, por causa das caretas do guitarrista da banda inglesa com o mesmo nome que o Ricardo adorava imitar quando subia ao palco.

Não possuíam ainda muito equipamento, mas com os seus instrumentos e colunas de som encheram o palco número dois do recinto logo no primeiro dia que ficou marcado por uma onda de calor tão intensa que rapidamente esgotou o stock de cerveja, o que fez com que muitas pessoas na assistência desejassem a chegada do verão para virem os festivais organizados pelas duas marcas desse precioso néctar que tinham a maior quota de mercado.

Começaram com um solo de bateria e passaram a uma versão de um clássico dos UHF, a roçar a mediocridade. Terminaram com um tema da sua autoria que numa versão feita pelos UHF talvez tivesse alguma qualidade e, pelo meio, esgrimiram argumentos com os detratores da banda, que os acusavam de plagiar as obras dos outros compositores e, de cada vez que o faziam, tocavam os seus instrumentos mais alto. Era quando as cordas da guitarra guinchavam como se fosses as de um estendal ferrugento prestes a cair e da bateria saia um estrondo semelhante ao rebentar de uma bomba que acabaria finalmente com o tormento de quem estava ali a ouvir.

O festival realizava-se num recinto que tinha aproximadamente o comprimento e a largura de uns três campos de futebol, ou seja, uns três hectares de terra-batida onde decorriam as atuações das bandas desde as quatro da tarde. Daria uma boa área para o cultivo para a fava ou para a ervilha mas certamente quando chovesse mais se pareceria com um imenso batatal. Tinha dois palcos colocados nas extremidades, separados por um relvado onde podia sentar-se para fazer um piquenique quem levasse a marmita de casa, porém, perto de cada um havia barraquinhas que vendiam bebidas frescas e refeições ligeiras para quem ali tivesse chegado de mãos a abanar, que é como quem diz, só com a roupa que levava no corpo. Esta convinha ser fresca, porque escasseavam as sombras e para torrar ao sol mais valia ter ido para a praia.

De portas abertas desde cedo, o espaço tinha a configuração de um retângulo, mas ao centro numa área circular é que funcionara o picadeiro da antiga escola de equitação da qual restava um muro alto de tijolo, rasgado por um portão com largura suficiente para caber um camião-cisterna, e que a protegia como às antigas construções da Idade Média, em redor do qual se viam os eucaliptos que foram plantados para substituir a mata de pinheiros que, aos donos do terreno, não davam uma tão boa fonte de rendimento.

Tudo em volta era plano, não havendo elevações de onde se pudesse observar, sem ser visto, o que se passava no seu interior. Para se poder fazê-lo, era preciso fazer parte da organização daquele evento ou adquirir um bilhete, que tanto podia ser só para um dia como dar para assistir a todos os concertos que decorressem.

Comprara o meu por cinquenta euros, sem os quais inicialmente ficara com menos vontade de me divertir do que se me tivessem dito que podia reaver o dinheiro, no caso de me sentir defraudado, porque já sabiam o que eu ia encontrar.

Fora, em todo o caso, das primeiras pessoas a entrar e atrás de mim, na fila, havia quem empurrasse, talvez para ver mais de perto a miúda gira que devia ser a namorada do mastodonte que nos olhava desconfiado antes de passarmos o bilhete no torniquete que girava para, com melhores modos do que ele, nos dar passagem.

Uma vez lá dentro, surpreendeu-me o elevado número de rádios locais ali representadas por repórteres que abordavam as pessoas informalmente como se fossem amigos de infância. E o mesmo se devia passar em relação aos artistas, porque só assim se justificava, nas observações feitas, não terem dado ao desempenho dos Naftalina a nota negativa que eles mereciam.

Quase barafustei quando um deles, vindo ter comigo, me informou de que fora cancelado o primeiro concerto do dia que era previsto começar dali a cinquenta minutos. Sentei-me onde, do lado em que apanhava com o vento, não havia ninguém a fumar daqueles cigarros esquisitos que põem as pessoas a rir até de imprevistos como estes e pus-me a apreciar a paisagem. Uma brisa suave secava-me o cabelo de pontas espigadas, que quando suava se tornava brilhante como se fosse oleoso. Levei a mão à mochila, acendi um cigarro e soprei uma espiral de fumo para o alto, como gostaria de ter feito com a enxaqueca que surgiu do nada sem avisar. Depois devolvi o maço ao seu lugar, antes que o bonitão que agora não tirava o olho de mim, notasse que estava cheio e fosse só por me querer cravar um cigarro que viesse meter conversa para o meu lado.

Nisto, vi o Nilton, que era o mais recente melhor amigo do ex-baterista dos Naftalina, desde que este trocara a posição de subalterno na banda pela participação num conjunto de baile onde, além de ser percussionista, tocava instrumentos de sopro.

Lá porque tinha boa-pinta, gostava de armar-se em engatatão. Mirou-me disfarçadamente, mas mesmo assim, desconfiando das suas reais intenções, ofereci-me para acompanhá-lo, de uma ponta a outra do recinto, numa viagem pela rota dos sabores e dos cheiros que tinham para oferecer as barraquinhas dos comes-e-bebes. Éramos da mesma idade, mas ele completaria os vinte anos antes de mim, porque era de Carneiro e eu, que nascera sob os auspícios do Outono recém-iniciado, era Virgem.

O rapaz era natural do Brasil e vira pela primeira vez a luz do dia na cidade maravilhosa, que continuava a ser o Rio de Janeiro, mais concretamente do histórico bairro da Lapa de cujos botequins foi visto a sair o primeiro malandro da história recente daquele país. Era, portanto, um carioca de gema mas linguarudo, um legítimo fala-barato, que soltava a língua sem tratar de poupar nos adjetivos, quando o assunto era enaltecer, não só as belezas naturais da sua terra mas igualmente dos locais por onde tinha passado. O pai, embaixador que começara a carreira em Lisboa, proporcionara-lhe desde a infância uma viagem de circum-navegação por todos os países da américa-latina, só finda a qual ele percebeu que, apesar dos problemas da desigualdade social que havia naquele país, aquele de onde era natural era, de longe, de todos o mais bonito. Repentinamente, sumiu no meio da multidão que o engoliu como a um inseto. Foi para o lado que eu dormi melhor, pois não daria minimamente pela falta dele.

Aproximei-me do palco principal onde dois técnicos afinavam uns aparelhos. Mexiam no equipamento de som e para ouvir o que eles diziam entre si não precisava de me ter chegado para tão perto, porque trocavam impressões experimentando o microfone que estava ligado sobre o palco. Um era baixote e gordo igualzinho ao pai do meu vizinho baixista dos Naftalina, ao passo que o outro tinha um ar desembaraçado e se parecia mais com um irmão dele, de quem toda a gente dizia que o rapaz era a cara chapada.

Descobri que ultimavam os preparativos para os concertos da soirée, que terminariam depois da meia-noite quando subisse ao palco principal, para primeira apresentação em Portugal, um conjunto de heavy-metal em que os cinco elementos vestidos de preto desafinavam pelo mesmo diapasão. Eram germânicos, originários da antiga Europa de leste e num panfleto, em que surgiam numa fotografia claramente favorecidos pela arte do Photoshop, apareciam com destaque de cabeças-de-cartaz do dia que até fora marcado pela boa-disposição, apesar de alguns percalços, pelo menos até ter sido oficialmente declarado que a cerveja tinha esgotado.

Se não conhecem o Seixal, essa pacata terra na margem sul do Tejo, cravada entre Almada e Coina, a paredes-meias com o Barreiro, vão lá, mas acompanhadas, de preferência, pelo namorado. Sempre têm com quem falar e, caso apareça o Nilton, talvez por medo dele ou simplesmente por respeito, o primeiro sítio para que ele vos olhe não seja o rabiosque.