Sejamos todos especiais 365 dias por ano

Todos os dias de manhã, ao acordar, levanto-me preguiçosa para mais um dia de trabalho: mais um dia a aturar clientes chatos e desagradáveis que descarregam todas as suas frustrações de uma vida vazia no primeiro empregado que lhes aparecer pela frente. (Muitas vezes sou eu a primeira visão diária deles! Sorte a minha!) Saio do quentinho dos meus lençóis e abro a persiana; inconscientemente rogo pragas a toda aquela luz que me invade o quarto e me desperta, sem pedir licença, para um novo dia.

Ainda em modo zombie, arrasto-me até à cozinha e lá está aquela lontra (peço desculpa … o meu labrador!) esborrachada no sofá onde eu gostaria de tomar o pequeno-almoço; entre saltos por me ver, lambidelas e muita baba lá se vai metade da minha refeição! Solto mais uns raios e coriscos sobre a dificuldade que este meu cão tem em abandonar a fase do cachorro e para de fazer disparates… os meus pais chegam, enérgicos como sempre (nunca percebi como consegue falar tanto, em tão pouco tempo e tão cedo!), enchem-me de bons dias, de perguntas, de conselhos! Nada que me surpreenda! Remeto-me ao mau humor do costume e permaneço calada… Nada que os surpreenda! Franzo a testa e desaprovo toda aquela agitação matinal. Pego na mala, depois de muitas indecisões sobre o que vestir, confiro os trocos da carteira, para café e tabaco, e reclamo de novo – tento encontrar lá alguma espécie de mola que impede a permanência das moedas e das notas; chegou a hora de apanhar mil e um transportes públicos, a transbordarem de pessoas, hálitos, odores, transpirações, preocupações, tiques nervosos, olhares inquietantes para os pequenos ponteiros que cada uma tem no pulso e eu só me questiono sobre a necessidade de tanta pressa, parecem máquinas ligadas à tomada com medo de pararem e de ficarem sem sistema! Sempre que entra mais alguém no autocarro, toda a gente expira agressivamente – a lata de sardinhas amarela da Carris vai ficar ainda mais compactada!

Bem mais perto do que posso imaginar há alguém tão humano como eu, com um sorriso tão bonito como o meu… o seu maior desejo é ter clientes histéricos a fazerem reclamações absurdas: era sinónimo de que tinha um emprego; ele adoraria ter de abandonar os seus quentinhos lençóis todas as manhãs: significava que o seu “quarto” não era decorado por bancos de jardim, cartões, cobertores sujos, pombos e transeuntes alienados que parecem não ver ou não querer ver aquele “quarto”. Ele adorava poder ser despertado pela intensidade da luz solar … com isso concluía que não tinha adormecido sob a luz do luar! Ele deseja ter um pequeno-almoço, mesmo que o tivesse de dividir com cinco labradores; ele já não sabe o que é uma refeição. Não há agitação matinal que o perturbe, a acelerada vida cosmopolita nunca o abandona entre ruas e vielas, esmolas e desdenhas; não qualquer indecisão quanto a vestuário, aliás, não há nenhuma indecisão naquele ser humano – porque não há opções de escolha. Ele não sabe o que é calor humano, apesar de estar ao lado de cada um de nós, de cada um de vocês. Ele fez o meu Natal este ano apenas por sorrir genuinamente ao agradecer alguns agasalhos e me dizer “A menina é uma pessoa muito especial!”

Sejamos todos especiais 365 dias por ano!