Semelhanças desiguais – Bárbara Borralho

Estás sozinho. Foste engolido pela noite e o vento que açoita as árvores ameaça levar para longe o ar que precisas para respirar. Tens medo mas não tens um porto seguro, não tens braços abertos à espera para te envolver num abraço protector. Não tens mais nada senão a ti próprio, ainda que já não reconheças as tuas feições. Não consegues parar de caminhar, mesmo que vagarosamente; sentes que se parares ficarás ainda mais perdido, com a cabeça às voltas no labirinto da noite.

Ainda é cedo. As luzes da rua estão acesas mas não te indicam nenhuma direcção. Procuras as janelas dos prédios que te rodeiam em busca de claridade, como se isso te fosse ajudar de alguma forma. Queres acreditar que alguém irá ver-te e tentar ajudar-te. Contudo, para a maioria das pessoas, não passas de mais um elemento da paisagem, alguém sem voz e pensamento. Nasceste no mundo errado, num local que não está de todo destinado ao que tens para lhe oferecer.

Começas a ouvir os pássaros chilrear e chegam-te à memórias imagens de outros tempos, de anos em que não tinhas as mãos engelhadas e sujas, da época em que alguém te dizia “olá” enquanto te sorria. Era tudo mais fácil e tu sabia-lo. Ouviste vezes sem conta que crescer era difícil e que a tua voz nem sempre iria destacar-se acima da multidão. Mas naquele momento não fizeste caso; esses anos pareciam distantes demais. Mal sabias tu que o tempo corre mais depressa do que nós. Mesmo que procures o seu rasto, sabes que nunca serás capaz de encontrá-lo, que estás destinado a vaguear pelos passeios enquanto outros dormem o sono dos “justos”. Mas que justiça há se não tens onde dormir, se fazes o mesmo caminho todos os dias por umas migalhas de comida ou um pouco de atenção?

Sou hipócrita, vejo-te e não faço nada. E não o faço porque não sei o que te possa oferecer. Cumprimento-te e reparo que apesar de tudo aquilo que a vida te tirou (ou simplesmente não te deu) olhas para mim com todo o respeito do mundo, como se fosse uma pessoa verdadeiramente importante. Tenho tanto valor como tu porque apesar de tudo temos algo em comum: somos pessoas. Respiramos o mesmo ar, vivemos sob o mesmo céu e pisamos as mesmas ruas.

Noto algum cansaço na tua voz, como se dissesses bom dia a cada pessoa que passa por ti mesmo que muitos nem se dignem a ver-te. Olham-te, mas não te vêem. Enquanto te sentas no passeio, passam por cima das tuas pernas como se não as tivesses, atiram uma moeda para o teu colo pensando em ti como a boa acção do dia. E ainda assim agradeces cordialmente porque sabes que apesar de tudo, precisas desse acto de “piedade” para poderes comer.

“Tem um bom dia e que tudo te corra bem”, dizes-me enquanto acenas um adeus. Dou-te um sorriso em troca e desejo-te o mesmo. Enquanto caminho rumo ao meu destino, não consigo deixar de pensar como temos vidas tão diferentes tendo a mesma idade. Se pudesse faria muito mais para te ajudar, para ajudar todos aqueles que como tu ficam contentes com o simples reconhecimento da sua existência. “Ainda estou por aqui”, dizes-me quando regresso. Eu sei, nunca deixo de reparar em ti e em todas as outras pessoas que passam por mim. Somos feitos da mesma matéria ainda que o mundo se negue a reconhecer essa igualdade.

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Riso sem siso