Ser amigo é …

Dão-se alvíssaras a quem indicar o paradeiro de algum amigo mais constante e leal do que o Paulinho.

Conhecemo-nos há tempo bastante para saber do que falo. Nessa altura, trabalhávamos em campos opostos no mesmo ramo de atividade. Eu era o vendedor de materiais de construção por catálogo que ganhava à comissão, ele o diretor de Compras de uma pequena empresa familiar cujo crescimento acompanhava o aumento do número de filhos do patrão, que era casado com uma mulher quinze anos mais nova que engravidava a cada dois anos.

Paulo não Teria mais de trinta anos nessa altura, contudo, apesar da tenra idade para as funções que desempenhava, exercia o cargo com a competência e o mesmo rigor que exigiriam de uma pessoa mais velha o uso de toda a sua experiência para não cair na lábia do primeiro vendedor de sanitas e mosaicos de casa de banho que lhe aparecesse pela frente.

Confesso ter-me tornado em poucos anos, graças à minha forma convincente de falar, num desses sujeitos taciturnos que por levá-la demasiado a sério, elevam a um patamar inacessível a amigos e familiares, a vida profissional e a necessidade de terem uma carreira de sucesso. Um desalentado a quem unicamente causa motivação, contribuir para a subida do nível das vendas da empresa onde trabalha, a um patamar a que, sem a ajuda dos colegas, nem ele chegaria, nem que se pusesse em bicos de pés.

Constantemente ocupado, Paulo reencaminhou uma das minhas primeiras chamadas para um subordinado a quem chamavam de Pequeno César, por causa de ser parecido com um ator americano dos anos trinta que fazias papéis de durão, e tinha uma conversa mole que nos dava sono de auscultador colado ao ouvido.

Entendi o significado de ficar pendurado ao telefone com alguém de estávamos a levar uma seca. Seja como for, não vendi nesse dia o material que pretendia, três mil metros quadrados de azulejo que tinham sobrado de um empreendimento turístico em Troia, mas fiquei com vontade de no dia seguinte insistir, sujeitando-me a tornar a ouvir o chato, não acreditando na possibilidade da exceção à regra de tanta água mole em pedra dura tanto dar até ser capaz de furá-la.

Um dia, consegui finalmente chegar á fala com o diretor de Compras que me aconselhou a marcar com a secretária, na agenda, um dia para receber-me. Falei então com uma jovem de sotaque germânico que me pareceu eficiente e dali a dois dias desloquei-me à fábrica onde ele trabalhava. Apresentei-me e rapidamente vi-a, arredando a saia curta de modo a mostrar-me as pernas, levantar-se da traseira de uma secretária castanha de mogno, em cujo tampo todos os objetos estavam arrumados da forma mais funcional possível.

A agenda aberta ao lado do telefone sem fios e, entre este e um copo de plástico azul onde estavam espetados lápis e canetas, uma moldura exibindo uma fotografia em que estaria a sorrir à chegada ao mais recente lugar no estrangeiro onde tinha passar umas férias de sonho, na companhia do namorado.

Após ter anunciado ao chefe a minha presença através do telefone, conduziu-me a uma sala que não passava de um cubículo à vista da dela, que além de secretária devia exercer um cargo de direção ainda mais importante do que o do Paulinho, porque, contrariamente a ele, com essa senhora nunca tinha sequer conseguido chegar à fala ou seria um feito de tal forma inolvidável que jamais apagaria da memória.

Havia uma mesa e em cima dela um computador portátil, ao lado de um bloco onde Paulinho fazia contas, a indiciar que nem sequer devia usá-lo. Mais afastada, havia uma cesta de papéis, a competirem em altura com uma pilha de pastas de arquivo que provavelmente continham documentos importantes, uma vez que à vista nenhum deles estava rabiscado por ele.

Recebeu-me de forma simpática, um sujeito gordinho, de ar patusco que inspirava confiança e, pela forma como me sorriu, parecia até conhecer-me do tempo em que eu contava aos meus amigos, que se desmanchavam a rir, a forma como andava, nas barbas do jovem marido, a comer uma americana mais velha que me chamava Mon Amour e tratava com mais deferências e mordomias do que se eu pertencesse aos quadros da nobreza.

Estático, Paulinho lembraria a figura possante de um paquiderme assustado pela presença humana, daí que, para contrariar essa tendência, se tenha logo levantado e vindo na minha direção cumprimentar-me com um aperto de mão, tão forte que eu soltei uma gargalhada sonora que deve ter feito a secretária pensar que tínhamos fechado algum negócio rentável para ambas as partes.

Tinha o cabelo liso, penteado de risco ao lado com Bryllcreem, que reconheci por causa do odor, uma pasta gordurosa semelhante à tradicional brilhantina mas mais barata e de efeito menos duradouro.

Deu-me depois permissão para me sentar perto de si, de onde quase podia escutar o que pensava a meu respeito. Que era um sujeito teimoso e encantador quando abria a boca, mas sem educação ou não me teria atrasado mais de duas horas de forma a chegar em cima da hora do almoço, como se contasse que ele me convidasse para sairmos dali direitinho a um bom restaurante.

Contei-lhe que em mais de trinta anos de carreira, jamais tinha tido o ensejo de ser atendido por uma mulher tão bonita como a que o secretariava, mas só começámos a entender-nos quando passámos a falar abertamente de negócios. Apaixonado dos números, Paulinho pintalgava de negro as barras de um gráfico que mostrava a evolução daquela empresa. Semelhantes aos degraus de uma escada, eram evocativos do percurso que ele tivera de percorrer para, num par de anos, ter progredido de moço dos recados a chefe do departamento Administrativo e, posteriormente, a diretor executivo do departamento de Compras.

Em poucas semanas ficámos amicíssimos e ainda hoje, que já me reformei por limite de idade, continuamos a ver-nos regularmente.

Ele é que, coitado, perdeu o emprego porque a empresa onde trabalhava entrou em processo de insolvência sem plano de recuperação à vista e, por causa disso, está desempregado vai para três anos.

Não me mandatou para executar esta tarefa, contudo, lembrei-me e autorizou-me a tentar ajudá-lo através de publicitar a sua situação nesta crónica, onde, à parte o que inventei, é tudo verdade.

Não foi chefe de Compras, mas onde trabalhou era responsável por fazê-las e não tinha a secretariá-lo nenhuma mulher bonita. Aprendeu a desenrascar-se sozinho. É experiente no atendimento telefónico e ao público, é simpático, honesto e pontual, entre outros méritos de que dispõe. Por isso, não se arrependerá quem vier futuramente a contratá-lo.

Tem quarenta e tal anos e já trabalhou numa ourivesaria, mas mais recentemente, esteve aproximadamente uma década ao serviço de uma firma instaladora e revendedora de material elétrico, na cidade da Amadora onde reside. Tem feito diversos cursos de formação que o enriquecem, embora nos bolsos o dinheiro escasseie, pelo que precisa urgentemente de arranjar trabalho.

Não dá porque não pode, alvíssaras, a quem o auxiliar a regressar rapidamente ao mercado de trabalho, mas ficará eternamente grato.