Simplesmente Ana

Em palco, quando dançava atraindo para si a atenção do público, era só para a música que ela tinha ouvidos e só para ela que ele tinha olhos, capazes de, pelo poder da sugestão, vê-la, pelo écran plano da sala que estava sempre sintonizado na TVI e transmitia a “Dança com as Estrelas” ao domingo, lançar-lhe um convite para ganhar coragem de se levantar do sofá e sair de casa, ir ter com ela ao estúdio de gravação a Lisboa e perguntar-lhe se podia começar a treinar em casa para no programa da próxima semana ser o seu par.

Submetendo-se à votação de um júri de três elementos que não se cansava de elogiá-la no final de cada atuação, dançava alheada dos comentários que, pelo facto de ser bela, suscitava nos homens de bom gosto que gostariam de tê-la como amiga de uma irmã com quem não se dessem tipo cão-e-gato para acalentarem o sonho de vir a conhecê-la. Tão abstraída do mundo em redor como ele que, atento a seguir os seus passos de dançarina experiente, apesar de ser ainda jovem, se mostrava alheado da presença em pista das restantes bailarinas, como se, enchendo o salão de passos mágicos enquanto dançavam com os seus pares, elas não fossem igualmente jovens e belas como ela ou não se movimentassem pelo salão com a mesma graciosidade, estivessem mais vestidas do que ela, tampouco estivessem ali ou nem sequer tivessem nascido.

Longe de querer seduzi-lo, como alguém a quem se quer atingir no peito com uma flecha que não fira, o que ela não supunha era que, de entre tantos admiradores que devia ter desde que fora convidada para integrar o corpo de baile que participava semanalmente no programa, algum houvesse a quem fosse indiferente dançar bem ou mal para agradar, contrariamente ao júri, a quem tinha de provar ser melhor par do que os outros para sacar a nota máxima que praticamente a dispensava do resultado da votação telefónica do público para saber se saía ou continuava a concurso na semana seguinte.

Chamava-se simplesmente Ana e na opinião desse admirador que à fisionomia dela não acrescentaria um traço, tinha feições de quem cuidava de dormir muitas horas à noite para de manhã acordar sem olheiras e com a pele fresca. À noite, deitava-se em lençóis de seda que a revigoravam como se, por causa de serem tão macios, ela tivesse a certeza de que em nenhuma outra cama seria capaz de se sentir tão confortável. Por fim, pegava no sono e dormia placidamente como se quando sonhava revisse os melhores momentos de infância e, entre eles, familiares distantes e amigos com quem não tinha o prazer de privar havia um ror de anos.

António, assim se chamava ele, achava-a belíssima, com os olhos mais risonhos que estava ao seu alcance imaginar numa mulher que surpreendesse a olhar para si e os cabelos, ora lisos ora encaracolados, que a rapariga serpenteava entre os dedos como se tentasse descobrir se era com a pelagem de um gato persa ou de um coelhinho da Páscoa que ele mais se parecia, eram sedosos, reagindo ao tato libertando uma fragrância que, dos pés à cabeça, podia confundir-se com qualquer outra parte do corpo pois o cheiro era exatissimamente igual.

O programa de entretenimento visto semanalmente por milhões de telespetadores, ia na terceira edição, mas ela só participara em duas, integrando as bailarinas residentes que dançavam com os artistas convidados desviando deles o foco das atenções dessa noite.

Não sendo uma das mais visadas pelas câmaras, da primeira vez em que participou, foi, juntamente com o concorrente que consigo formava um belíssimo par, uma das que durante mais vezes entrou pela casa adentro de quem gostava de assistir ao programa pela televisão, porque esteve presente na final, cingida num maillot de seda de reduzida dimensão, onde cabia apertada, mas dentro do qual se sentia perfeitamente à vontade para exibir um par de pernas tão bem torneadas quanto longas, grandes como um desejo.

Como num desses grupos convidados à semana para lá irem apresentar-se, sobressairia, não por dançar melhor ou pior do que elas, durante mais ou menos tempo, nem que fosse no meio de uma centena de bailarinas, todas mais altas, executando ao ritmo do hip-hop uma moderna coreografia, que mais não era do que, em conjunto, repetirem os gestos uns dos outros mas sem darem a entender lá para casa que se estavam a imitar. Como se, pelo contrário, acabassem de criar algo novo e só por coincidência tivessem tido todos a mesma ideia de executar passos iguais.

Talvez não fosse portuguesa, tinha a pele de tom claro como as mulheres do norte da Europa mas era baixa e o cabelo escuro, num traço típico das oriundas do sul. Porém, a característica que tinha em comum com todas as mulheres nascidas em Portugal, de norte a sul e ilhas, era o forte caráter, associado à frescura própria dos vinte e poucos anos que aparentava ter, assim como a doçura que transmitia no olhar e não era, de certeza, aparente.

António tinha já uma amiga com algumas características de ambos. Parecia-se com ela porque também bailava e dominava o tango, a valsa, a rumba ou o chachachá; e com ele próprio porque sendo solteira era livre e descomprometida. Contudo, tirando o pormenor do nariz empinado, que ele julgava ser igual em todas as mulheres, exercessem ou não a dança a título profissional, em mais nenhum aspeto achava que ambas se parecessem e por isso preferia a bailarina que o encantava aos serões de domingo.

Fruto de uma fértil imaginação, por mais de uma dúzia de vezes imaginara como correria o primeiro encontro que tivesse lugar entre ambos. Como reagiria ela ao que ele já sabia de cor para lhe dizer, às perguntas que tinha para fazer? Podia endereçar-lhe um convite para a página do facebook e aguardar a resposta. Mas no caso de ela recusá-lo alegando que em circunstância alguma saía com estranhos, de pronto lhe responderia com o seu nome e, para se ficarem a conhecer, à pergunta do que costumava ele fazer nos tempos livres, diria que, se a ela só interessava dançar, a si somente importava ficar a vê-la.

Nem se incomodava com a possibilidade de ela ripostar, estranhando que, a ser verdade o que ele dizia, nunca tivesse ouvido falar numa pessoa que um dia aparentasse estar tão apaixonada. Mas tranquilizava-o saber que, apesar de serem apenas amigos, ela não lhe mentia, uma vez que se admitia nunca ter ouvido falar nele, era certamente porque, até àquele momento, só tinha tido efetivamente ouvidos para a música.