Síndroma da coitadinhice – Mara Tomé

“São gémeos? Ah coitada…”

“Vão as duas para a escola? Ah coitada…”

“Têm autismo? Ah coitada…”

A “coitadinhice” é algo que deve ser manifestado, de forma visível, de modo a incomodar, com o intuito de vitimizar, contra a vontade do abordado.

A “coitadinhice” não vem sozinha. Por norma, vem acompanhada de um olhar extremamente piedoso, do género, “tens-aí-uma-coisa-estranha-que-pode-pegar-se-deus-me-livre-mas-olho-para-ti-misericordiasamente” e de uma voz quase melíflua.

A “coitadinhice” deve ser expressa em voz alta, por regra, junto do alvo. Se for uma mãe com uma criança – ou várias, gémeos ou mais será o ideal -, preferencialmente desenrascada e entendida, é a vítima perfeita. Deve ser abordada como se a conhecêssemos toda a vida e atingida pelo “ah, coitada” com toda a veemência, sem dar espaço para uma resposta.

A “coitadinhice” não pode esperar uma resposta à altura, sob pena de a pessoa ser considerada antipática perante a boa vontade do interlocutor.

A “coitadinhice” fica excecionalmente bem quando aplicada a pessoas com problemas ou deficiências, preferencialmente crianças. Não interessa o quão fortes serão os pais dessas crianças nem quais os seus limites de tolerância perante a absurdidade do que os rodeia. Dem ser abordados, não importa onde. Ou, caso não se ouse fazê-lo, comentar com a pessoa ao lado, cochichando mas deixando perceber de quem se fala e porquê.

A “coitadinhice” é transversal a todas as idades, credos, raças, sexos, estratos sociais, etc.

Não gosto de “coitadinhice”.  “Ah, coitada…” A sério? Por que razão alguém que passa pela alegria de ser mãe – e mãe de gémeos – é considerada “coitada”? Por que razão ter dois filhos na escola é para ser comentado de “coitada”? A maioria das pessoas nem sabe o que é autismo mas sabe dizer “coitada”. Cada vez me convenço mais de que se diz “coitada” para se ter algo que dizer, embora, nestas situações, seria muito melhor se estivessem caladas. Há algo que toda a gente deveria entender quando se abordam pessoas que estão com crianças, principalmente crianças com necessidades especiais: a nossa tolerância é para com eles e baixa drasticamente com comentários absurdos, vindos de terceiros.


E que tal umas sugestões, ao invés da “coitadinhice”?

– elogiar a criança pela sua beleza, gestos, comportamentos ou palavras

– não julgar uma criança pelo seu comportamento estranho ou inconveniente – principalmente quando os pais estão tão preocupados que nem parecem respirar

– evitar reações inapropriadas junto de uma criança, seja por ignorância ou crueldade

– não abordar os pais para dar sermões ou dicas de educação, sem saber minimamente o que se passa

– evitar os chavões “se fosse meu filho… “ e “ah coitada…”: se fosse seu filho, iria reagir do mesmo modo ou pior que aqueles pais; não comparemos o que desconhecemos

– evitar falar quando não há nada para dizer. O silêncio faz maravilhas.

Crónica de Mara Tomé
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