Socorro, apareci num cartaz do PS !

Não é novidade para mim. Como todas as mulheres que conheço, é suposto eu conseguir fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas daí a poder estar simultaneamente em diversos locais vai uma grande distância, sobretudo se eles estiverem tão afastados entre si como o Porto, Bragança ou Vila Real de Santo António.

E tudo porque a minha fotografia apareceu num dos célebres cartazes de campanha do PS onde falsamente anunciavam que algumas pessoas estavam desempregadas.

De que eu não fazia nada, já andava desconfiada a lacraia da minha patroa lá na lanchonete do shopping onde eu trabalhava ao fim de semana, mas não era preciso vir anunciá-lo publicamente. E lá por não ter trabalho não quer dizer que não tivesse um emprego. Além disso, estava longe de ser como afirmavam no anúncio, porque não era verdade que não recebesse qualquer contrapartida ao fim do mês, por mais que ache indigno trabalhar por um ordenado tão mixuruca e possa confundir a ninharia que levo para casa com quase nada.

Da noite para o dia, o meu nome e os de outras pessoas, passaram a encher capas de jornais e por toda a parte de viam, devido a constarem de cartazes que anunciavam desempregados, em vez dos empregos de queles andassem à procura, com comentadores a digladiarem-se sobre os argumentos a que é legítimo os Partidos recorrerem numa campanha para elegerem Órgãos de soberania.

Desde os outdoors presentes nas paragens dos autocarros, aos cartazes de onde, dos autocarros em movimento, lhes parecia que eu cumprimentava os transeuntes, passei a estar em todo o lado, para uns, com o ar abatido de quem inutilmente se queixa de continuar desempregado ao fim de quatro anos, para outros, com um ar revoltado e mal-humorado que bem podia ter estado na origem de ter sido despedido com justa causa no último lugar onde trabalhei, por ter insultado e batido à paulada no patrão ou coisa assim.

Lá do alto, afiguravam-se-me simpáticas as caras das pessoas que me olhavam compadecidas da minha triste sorte, antevendo o meu trágico fim se, mercê dos erros de campanha, os próprios socialistas ditassem o resultado das próximas eleições.

Saindo da cozinha onde tinha acendido a televisão aos berros, despertou-me mal-humorada a minha mãe, irrompendo pelo quarto a uma hora em que de mim só ouviria algum locutor falar, se fosse notícia eu dessa vez ter chegado cedo a casa, porque habitualmente de sábado para domingo nunca me deitava antes das seis.

Ouvi-lhe uma reprimenda, por um lado porque me tinha filiado num Partido sem lhe pedir autorização e, por outro, por lhe ter mentido, ocultando que estava desempregada, assim como a origem do dinheiro que lhe entregava mensalmente para ajudar a pagar as contas, mas ao princípio não estava a perceber nada. Era como se dos meus cinco sentidos, por causa do sol, que mal ela levantou a persiana me subtraiu ao sono, o da audição tivesse sido o mais afetado e continuasse por isso ainda entorpecido.

Soaram-me como a um aviso de bater de portas que devo ter escutado tardiamente porque não fui a tempo de evitá-lo e de repente senti os tímpanos a estalarem. Sem que eu percebesse o motivo, a minha mãe falava num tom de voz que estranhei porque não estava acostumada a ouvi-la gritar comigo, como se em voz alta falasse para dentro do meu sonho no qual eu pudesse estar mais afastada do que a distância que nos separava.

A custo, destrincei as palavras medo e depois política, em meio de diversos palavrões que deram a entender tratar-se aquela de uma atividade pouco recomendável. Indaguei à minha mãe o que se estava a passar e ela contrainterrogou-me querendo saber se o emprego que tinha não era um mero artifício e nem era verdade o que diziam as pessoas na televisão acerca da não renovação de noventa e nove por cento dos contratos que empregavam estagiários em início de carreira como eu.

Da única maneira que consegui, expliquei-lhe que não sabia do que se tratava. Num gesto de intolerância com aquela atitude, abri os braços e comecei a dizer que estava farta de viver numa casa de doidos. Estava disposta, nem que fosse somente para me livrar daquele interrogatório, de me levantar e sair de casa sem tomar o desjejum nem perguntar o que ia ela fazer para o almoço, a fim de avaliar se regressava cedo ou mais valia permanecer ausente até à hora do jantar.

E foi o que fiz. Deitando os problemas para trás das costas, disparei em direção à casa do Júlio, que além de meu namorado era quem entendi melhor a minha mãe, já que, até quando nos juntávamos no sofá a ver televisão, bastava-lhe olhá-la uma vez para saber onde ela não queria que pusesse as mãos.

Estava deitado depois de ter passado a noite na farra, disse-me o pai que veio abrir a porta descalço, contrariado por andar a pé tão cedo e foi logo avisando que não queria acordá-lo para não ouvir dele a queixa de já bastar fazê-lo à noite quando começava a ressonar.

Focou-me pela primeira com um interesse que achei desnecessário. Ligeiramente anafado, não era a meu ver um homem atraente, tinha um bigode muito fino e uma calvície acentuada mas o mais curioso é que guardava um penacho de cabelo no alto da cabeça, como os de cor garrida que põem os palhaços quando, para ter mais piada e fazer mais sucesso junto da criançada, acham que não lhes basta ter posto uma bola avermelhada no lugar do nariz e um imensíssimo par de orelhas de burro.

Tudo bem que eu com dezoito anos era uma mulher bonita e que ao meu corpo, bastante desenvolvido, já nem sequer faltavam umas estrias nas pernas provocadas pelo esforço de estar muitas horas em pé, nem um pouco do efeito pele de casca-de-laranja nas ancas para parecer uma mulher mais velha, mas como não gostei da maneira como ele se insinuou, despedi-me sem dizer para onde ia e saí dali a correr.

Cortando adiante, entrei numa rua repleta de gente, ansiosa por que dali em diante o dia me corresse, pelo menos, tão bem como até à hora em que me tinha ido deitar. Congratulei-me ao verificar que em cada rosto não havia igualdade. Nada melhor do que ao primeiro homem bonito que vi, e que serviu para esquecer a imagem de homem desmazelado do pai do Júlio, outro ainda mais atraente lhe ter sucedido. E assim sucessivamente.

Mais à frente, o rosto de uma criança de uns nove anos que podia ter-me arrancado um sorriso, mas em vez disso foi um grito de indignação, quando quase me encostando o dedo ao nariz me acusou, dizendo à avó, que eu era aquela senhora do Partido Socialista que andava em todos os cartazes a dizer a mesma coisa, para não ser acusada de mentirosa no caso de nalgum ser apanhada em contradição.

Num ápice, vi-me rodeada de estranhos que faziam questão de me vir cumprimentar e sob compromisso de honra prestar-me a sua solidariedade, visto estar desempregada há mais de cinco anos e comprovadamente não receber da Segurança Social qualquer meio de subsistência. Eram tantas e faziam tanto barulho que se naquele momento acordasse e quisesse ver-me, ao Júlio bastaria vir à janela do quarto e olhar na direção da pessoa ao centro para quem toda a gente apontava.

Senti-me perdida e arrependida de ter saído de casa, desembaracei-me das pessoas e pus-me a correr, deixando para trás uma velha estupefacta que vinha com um caderno pedir-me um autógrafo, como se estivesse convencida de que a minha assinatura serviria de livre-trânsito para obter dois beijos e um abraço que devia o que ela em seguida me iria pedir.

Entrei em casa afogueada e deparei com o meu pai sorridente, enquanto a minha mãe lhe servia um pequeno-almoço reforçado, que incluía ovos mexidos e papas de aveia que fumegavam na tigela e com isso lhe devem ter embaciado as ideias.

Assim por alto, fazia contas ao dinheiro que eu haveria de ganhar com futuras campanhas eleitorais dos Partidos que quisessem obter assento na Assembleia da República. Para ele, eu bem que podia continuar desempregada, mas devia tomar em consideração que em condições normais o Partido Socialista formaria Governo e só dali a quatro anos é que voltaria à oposição.

Falava alto com a minha mãe que estava na cozinha com a televisão acesa e foi nessa altura que percebi o que se estava a passar. Entrei para ir buscar uma chávena e ouvi numa reportagem perguntarem aos transeuntes o que pensavam do PS, em outdoors espalhados pela cidade, estar a usar a imagem de cidadãos comuns para relatar episódios reais de pessoas que sucumbiram à crise dos últimos anos.

Não percebi o que todas disseram, mas ouvi alguém queixar-se de que nem todos eram verdadeiros e que a imagem de algumas dessas pessoas estava a ser usada indevidamente. Era o caso de uma senhora em quem só não me revi porque não usava óculos numa armação com as hastes tão largas, além de não ter a cara sarapintada de sardas que no caso dela davam a impressão de o cartaz ter ficado deficientemente colado.

Vi uma série deles e só não vislumbrei o meu porque desliguei o aparelho quando mais gente refirmava que aquelas pessoas não só estavam a trabalhar e a receber regularmente os seus vencimentos, como não queriam perder os seus empregos em troca de uns míseros minutos de fama que nestes casos se revela efémera.

Tranquei-me no quarto a chorar e a meditar na ambição de alguns políticos, mas sobretudo nas palavras do poeta que no seu caminhar embora não soubesse por onde ia, só sabia que não ia por ali.

Como ele, a um mês das eleições de outubro, não sei ainda em quem voto mas já sei em quem não vou votar.