Sonho de uma noite de inverno

Virou-se para o lado e afundou a cabeça na almofada, ajeitando-se para dormir. Aconchegou os seios no lençol e sozinha num universo de olhos fechados, à margem o medo, centrou a atenção no ponto mais longínquo duma galáxia que lhe surgia diferente das descrições dadas pelos astrónomos.

Estava escuro como breu, mas foi-se apercebendo, à medida que se deslocava aproximando da sua órbita, que ele tinha o formato quase perfeito duma circunferência, que era ligeiramente achatada nos pólos, como se, inadvertidamente nessa zona, tivesse embatido noutro corpo celeste à deriva pelo espaço.

À primeira vista era cinzento, mas, agora que ganhava forma, era azulado, muito belo, do tom em que está pintado o céu, que é para onde em primeiro lugar olhamos quando invocamos a beleza que vive presente no ato da criação.

Visto ainda a menor distância, o outrora vulto de cor indistinta, ganhava o aspeto dum planeta de média dimensão, mas suficientemente grande para que, contrariamente a terem de viver concentrados numa área, os seus habitantes pudessem coabitar dispersos por cinco grandes massas terrestres a que as gerações vindouras porão o nome de continentes.

Nestes cinco territórios, com características diferenciadas, nuns sobressaía a riqueza da fauna, noutros a espectacularidades das montanhas, naturalmente viviam comunidades de pessoas com mentalidades diferentes, mas em todas elas havia a mesma propensão: a de uma minoria ser egoísta e agir impondo regras de atuação em comunidade favoráveis à defesa dos seus interesses.

Entre os seres primitivos que habitavam este planeta, evidenciava-se uma grande desigualdade, entre o domínio avassalador duma classe social composta unicamente por machos alfa, que resolviam as contendas entre si à bofetada e a submissão a que os outros estavam sujeitos. Eram autoritários e por isso adoravam submeter, à sua vontade expressa, a restante população que embora em número fosse superior, vivia aterrorizada ante a ameaça de punições severas pró caso de pensarem sequer em vir a manifestar publicamente o seu desagrado.

Estava-se claramente nos primórdios de uma civilização, mas estavam lançadas as bases para a criação na história a primeira sociedade totalitária, dominada por uma classe poderosa que recusava dialogar com a oposição.

Este planeta era como um oásis verdejante ao cabo de uma caminhada longa num deserto estéril. Proliferavam montanhas, desertos e lagos, e oceanos com bichinhos que procurando escapar a predadores não admirava terem escolhido viver aí a mais de mil metros de profundidade.

No dia surgiu no seio destas comunidades de seres que habitavam em cavernas esculpidas na rocha, uma bactéria que viria a causar enormíssimo número de mortos e enfermos em estado grave. Nem os mais inteligentes tinham inventado um calendário e, por isso, ninguém sabia ao certo em que ano da Era em que o planeta começou a ser habitado, se encontravam. No entanto, estavam criadas as bases para falarmos da primeira crise pandémica conhecida na história da humanidade.

Como havia em cada tribo um grande relacionamento pessoal, em poucas semanas, eram escassas as famílias ainda não atingidas pela estirpe mais grave da doença que deixava, mesmo os mais novos e teoricamente mais resistentes, muito debilitados.

Começaram a associar determinados sintomas à prevalência da doença e, assim, bastava a uma pessoa dar um espirro ou aparecer com febre, para o querem impedir de sair de casa, evitando que fora do núcleo familiar ele de pudesse vir a contagiar mais alguém. Pela primeira vez, ouviu-se voz de especialistas e a recomendação unânime foi de que, para não se estar exposto às gotículas libertadas na fala, o ideal era entre duas pessoas garantir-se uma distância mínima de dois passos quando paravam para se cumprimentar na rua.

Sem terem consciência disso, estava criado o conceito de distanciamento social.

Por causa da disseminação da doença, mesmo ao ar livre, procedeu-se, através de leis decretadas pelos líderes tribais, à proibição da realização das habituais feiras aonde a troca direta de bens era a forma de cada qual obter os bens de que necessitava sem ter necessidade de produzi-los. E numa economia rural, ao mesmo tempo que estavam impedidos de trabalhar os camponeses, entrou-se em crise. A primeira da história e punha-se em prática o primeiro período de confinamento de que há memória, e ficou registado nas pinturas rupestres em forma de diário dos acontecimentos daquela época para os historiadores da atualidade.

Baixou a incidência da doença, mas em contrapartida e sem qualquer apoio das autoridades, muitas pessoas morreram à fome, devido a estarem impedidas de trabalhar e à inexistência de terem como levar comida para casa.

Nascia a ideia, por parte de alguns Governos, de não apoiarem devidamente a população mais fragilizada, durante períodos de crise prolongada.

Estava-se perante uma doença contra a qual não havia remédios, nem vacinas, a primeira a deixar a generalidade das pessoas sem saber o que fazer. Estavam criadas as condições de uma nova ordem social, ainda sem se saber que viria a ser parte integrante dos programas de campanha dos atuais Partidos de extrema-direita que tentam chegar ao poder.

Com o arrastar do tempo, aumentava exponencialmente o número de mortos. Tentando minimizar os estragos, e para atenuar a péssima má imagem que iam dando, os governantes, através da possibilidade de extorquir bens aos donos das terras, criaram a obrigatoriedade de estes terem de estes colocarem ao dispor dos que nada tinham, de uma parte dos produtos de cultivo que tinham armazenado, assim como de uma parcela de animais comestíveis passíveis de poderem saciar a fome.

Estava criado o primeiro serviço de proteção social na doença.

Aos mais desfavorecido, os governantes sugeriram que emigrassem, procurando refúgio noutras paragens, como se, precisamente lá, só faltasse a sua força de trabalho para enfim prosperarem. Muitos embarcaram na aventura, mas não poucos desistiram ao fim de pouco tempo, regressando a casa, lamentando terem saído na ilusão de um lugar que lhes proporcionasse dias de sol mais radioso, e mais desanimados do que antes, para tentarem passar da teoria à prática os projetos de recomeço de vida que queriam implantar nesses lugares.

Com receio de perder definitivamente as hipóteses de cultivo desse ano, os donos dos terrenos maiores pressionaram os governantes para afrouxar as medidas de proteção, mediante a promessa de compensá-los largamente com parte dos lucros que obtivessem. E assim, instruíram os camponeses para voltarem ao trabalho, independentemente de, pela não quebra das correntes de transmissão, muitos deles terem adoecido e posteriormente morrido.

Assistiu-se pela primeira vez na história, a um levantamento de restrições que descambou num conjunto de consequências trágicas para a saúde pública.

Só podiam ficar em casa os doentes que além de espirrarem e tivessem febre, estivessem acamados. E como mandavam bater à porta individualmente de toda a gente, agentes do Governo treinados com o objetivo de controlo, estava criado o primeiro serviço de fiscalização às Baixas fraudulentas.

Na perspetiva duma crise sem fim à vista, alarmados, os líderes tribais resolveram finalmente reunir-se e prepararam-se para adotar medidas comuns de combate à pandemia, em primeiro lugar, e em segundo à crise social profundamente enraizada. A população estava a ser dizimada. Preparavam, então, um plano ambicioso que pretendia, não apenas erradicar esta doença, mas também prevenir o surgimento futuramente de outras.

Com a participação de especialistas, estavam em execução aquelas que poderíamos considerar as primeiras reuniões do Infarmed a ter lugar em Portugal, se nalgum dado lêssemos um indício a apontar para que esta história se tivesse passado por cá.

Quase a terminar, andavam as pessoas entretidas, na esperança duma espécie de fumo branco que deixasse avistar a luz ao fundo do túnel, quando da terra do tio Sam, separada dali por mar, chegou a notícia de confrontos entre as autoridades e um grupo de invasores que tentava à força ocupar a caverna que era representativa de um dos mais importantes órgãos do poder local. Estas notícias aumentavam para um grau insustentável de ansiedade, o clima de incerteza em que se vivia.

E foi devido a isso que ela acordou, sobressaltada, certa de que detestaria viver num mundo assim, igual àquele aonde imperava o desrespeito. Atirou para o alto o lençol fino que a cobria, não transparecendo se era por dormir nua ou apenas sem soutien, que se lhe podia antever o corpo, e manteve-se acordada, mas de olhos fechados, quiçá, à procura de um planeta aonde houvesse uma forma de vida mais inteligente.

FIM