Sou do Futebol Clube do Porto! Porque um dia vi o meu Pai chorar.

Frasco, Juary, Madjer, vai ser o golo e é golo!

E o meu pai saltou. Muito alto. Sem trampolim, foi por ali acima. Punhos fechados. Braços a apontar para o céu. Olhos a piscar muito. Uma lágrima. A seguir outra. De repente eram muitas. Deixei de contar quando chegou às trinta. Só sabia contar até aí. E mal.
Era mil novecentos e oitenta e sete. Era vinte e sete de Maio. Era golo do Madjer em Viena. Número oito nas costas. Argelino. Pernas tortas. Meias para baixo. Alcorão em cada trejeito de lábios. Estava de costas para a baliza. O golo era impossível. Homens vestidos de azul e branco levavam as mãos à cabeça. Lia-se, na boca do número dois, um Meu Deus a sair devagarinho. Ao ralenti. O dez caía de joelhos. O cinco era uma Revolução falhada. A Superior Sul morria de desgosto. As bocas ficavam abertas até cima. Milagre! A bota preta do Madjer mexia-se. De costas. Perdido. Tonto. Sem saber de que terra era. Mas Deus emprestou-lhe os olhos num instante. E ele pô-los nas costas. Na parte de trás do peito. Golo! De calcanhar! Milagre! A Superior Sul nascia outra vez. E o número cinco já era uma Revolução ganha.

E o meu pai saltou. Muito alto. Com os olhos postos na Ursa Maior. Queria chegar ao céu. Fosse de que forma fosse. Tinha uma novidade para dar. Ao pai. Ao meu avô. Era vinte sete de Maio de mil novecentos e oitenta e sete. Faltavam dois dias para ser vinte e nove de Maio. Faltavam dois dias para fazer um ano que o meu pai tinha ficado sem pai.
E eu via-o chorar. E fiquei confuso. Porque saltava. E berrava golo com a voz de mil Adamastores. E tinha um tremor de terra nas pernas. E tinha dois rios a passear-lhe nos olhos. Um bonito. Outro triste. E tinha um coração à rédea solta.

Tinha seis anos. Só sabia contar até trinta. E mal. Mas comecei a perceber que é na vitória que um homem tem mais saudades. Que fica mais sozinho. Somos sempre um pouco do outro de quem gostamos. Ou muito. Deixamos sempre de ser um bocadinho de quem somos quando ficamos sem uma parte do que somos. Morremos, também. Vamo-nos embora. De outra forma. Mas vamos. E assim é que está bem. A dor é para doer. Muito. Tem que ser doída. Da mesma forma que se amava. Quando o amor é muito grande, a dor tem que ser muito grande. São duas montanhas do mesmo tamanho. Não há hipótese. Só se foge ao pelotão de fantasmas nos primeiros metros. Depois eles apanham-nos. Sempre!

No dia vinte e sete de Maio de mil novecentos e oitenta e sete o Porto foi campeão europeu. Em Viena. No Prater. O João Pinto fugiu com a taça. Não a dava a ninguém. Os outros todos iam atrás dele. Diziam-lhe para parar em nome da lei. Mas não.

Longe de Viena, em casa, o meu pai também não me largava. Era o que faltava! Mandava-me ao ar. E agarrava-me. O meu pai. Contente. E triste. Tudo ao mesmo tempo. Agarrava-me com os olhos. Que é a melhor forma de prender alguém. E de lhe dar liberdade, também.

Nesse dia, eu era pequenino. O meu nariz também. Mas o meu coração começou a crescer. E a bater com a força de mil tambores. Não pelo Porto. Mas pelo meu pai. Fecho os olhos. E lembro-me dele. Não com a cara que tem hoje. Com a outra! A que ainda tinha bigode. E cabelo que nunca mais acabava. E dentes brancos. Todos à mostra.
Li muito, depois desse dia. Amei. Desamei. Fui olhos de Cristo a pedir amor. E corpo de Cristo com muitos arranhões. Que só eu via. Fui pagão, às vezes. Descrente de quem me queria bem. Fiz trinta por uma linha para chegar ao sítio mais alto de mim. Escalei Himalaias. Fiquei com os dedos em ferida. E com as palmas da mão de um velho. Encorrilhadas. Com sangue. Mas foi a vinte e sete de Maio de mil novecentos e oitenta e sete que a sala de espectáculos que tenho cá dentro se ergueu toda. Primeiro o balcão. Depois a tribuna. A seguir os camarotes.
Entendi a vida nesse dia. Continuei a saber só contar até trinta. E a ler mal. Aos soluços. Continuei a dizer mainhe em vez de mãe. E a chamar azul ao roxo. E roxo ao azul. Mas um homem nunca se esquece do dia em que o coração cresce.

Sou do Porto desde esse dia. Desde as nove da noite dessa quarta-feira. Não pelas camisolas. Não pelo símbolo. Não pela corneta que o Lourenço tocava nas Antas, ao mesmo tempo que gritávamos Porto! Porto! Porto!
Mas pelo meu pai. Que procurava o dele com os olhos. E não o encontrava. Mostrei-lhe os meus. E o meu pai encontrou-os. E encontrou-se! E eu sou do Porto porque sou de quem faz bem ao meu pai.

Frasco, Juary, Madjer, vai ser o golo e é golo!