Também tive um ídolo. Era o Vítor Baía!

Vítooor Baía! Vítoooor Baía! Vítoooor Baía!

Era música. Da que faz chorar. Um concerto de trinta mil homens. A cappella. A assistir, eu. Pequenino. A ouvir. Mas com os olhos. Abertos, primeiro. Fechados, depois. E aí deixava de ouvir. E passava a ver. A ver-me. Já grande. Todo de preto. Golas ao alto. Cabelo a um triz dos ombros. Gel em cada fio. Luvas brancas. Botas pretas. No peito, o símbolo. Nas costas o um. O número maior de todos. Via-me a entrar. Trinta e tal mil holofotes. Um coro de homens de barba rija a gritar por mim. Velhos. Novos. Senhoras. Em câmara lenta, via-os a todos. Um por um. A seguir abria os olhos. E era pequenino outra vez. Sentado. Na bancada. A olhar para o céu. Que era lá em baixo.

O Vítor Baía foi meu ajudante. De sonhos. Ajudou-me. Nunca o soube. Mas ajudou.
Voei muito. Umas vezes para agarrar chutos que iam com muita força. Que eram bombas de napalm disparadas por Super-Homens. Outras vezes voei para dentro de mim. Onde vive um aeroporto. Com chegadas. E partidas. E uma Torre de Controlo a dizer que vou levantar da pista um. E que vou aterrar na dois. Aí fui sempre o que quis. Fui herói. Escalei o Cristo Redentor. Desenhei uma Sagrada Família. Pintei Guernicas. Iluminei quem ainda não tinha luz. Ganhei a maratona no último metro. E ouvi o Saramago.

Vítor Baía. Noventa e nove nas costas. Suíças grandes. Elegante. Um pavão a abrir as penas. Cabelo que nunca ficava torto. Mãos mais fortes que a pedra. Homem que nasceu com asas. Voava oceanos para ir buscar a bola ao ângulo. Aterrava no Pacífico. Sempre! Dever cumprido. Vamos a outra! Mudava a História. Porque se ouvia golo! Porque as bancadas levantavam-se. Mas não! Calma! Era engano. Havia um mágico. Que punha gente de boca aberta. Uns diziam que era milagre. Outros esfregavam os olhos. Outros tentavam adivinhar o truque. Era o Baía. Muhammad Ali que saltava mais alto que o exército de avançados e dava um gancho de direita na bola.

Era Natal. De mil novecentos e noventa e cinco. Prendas fantásticas. Meia dúzia de pares de peúgas. Três com raquetes de ténis. Três com renda. Meia dúzia de cuecas. Uma camisa de flanela roxa. Uma camisola muito bonita. Das que picavam. Castanha, com um rinoceronte à frente. Uns chinelos de quarto beges, com um bocadinho de pêlo. Por último, a prenda de uma tia que vivia fora. Conhecia-me mal. Sabia que eu gostava de futebol e que me chamava João. Só. Deu-me o embrulho. Disse que eu ia gostar. Desembrulhei. Lá dentro, uma camisola. Do Benfica! Pensei em dizer-lhe que era portista. Mas não quis estragar o momento. A seguir pediu-me para a vestir. Disse-lhe que estava com um problema na clavícula. Que ficava para outro dia.
Nessa noite, depois de todos saírem, o meu Pai chamou-me. Primeiro deu-me um abraço. Depois, umas luvas. Iguais às do Vítor Baía. Que passaram a ser um tesouro.E foram os quinze contos e seiscentos mais bem gastos do mundo.

No dia seguinte, estava frio. Chovia muito. Trovejava muito. Às oito estava nas Antas. Com as luvas. Para o Vítor Baía autografar. Botas cheias de lama. Cabelo para baixo. Guarda-chuva partido. Mas não havia treino. E o mundo acabou. E começou a trovejar a sério. Mas em mim. Voltei para casa com as luvas escondidas no peito. Um tesouro leva-se sempre no peito. Voltei às Antas no dia seguinte. E vi o Vítor Baía. E o mundo voltou a nascer. Pedi-lhe o autógrafo nas luvas. Estava atrasado. Disse que só depois do treino. Esperei. Duas horas. À chuva. Ao vento. Ao frio. No fim do treino, insisti. Era a única forma de assinar um tratado de paz comigo. Tirou as luvas dele. Eram iguais, caramba! E assinou. Vítor Baia. Em mim, passou a ser noite de São João. Era fogo-de-artifício a multiplicar-me no céu da Ribeira. Olhei. E li. Perfeito. Ou quase. Faltava o acento no i de Baía. Tinha posto uma pintinha. Esperei outra vez. Junto ao carro dele. À chuva. Ao vento. Ao frio. À trovoada. Ele apareceu. E pôs o traço no i. E riu-se. Muito. A seguir deu-me um abraço. E eu voltei a casa. Com as luvas. Escondidas no peito. Um tesouro leva-se sempre no peito.

Tinha catorze anos. Hoje tenho mais vinte. E falhei. E falhei-me. As Antas nunca se levantaram para me aplaudir. Nunca defendi um penálti no último segundo. Nunca estive de joelhos, com os braços a apontar para o céu, enquanto os meus colegas faziam os cem metros em cinco segundos para me abraçarem. Nunca cantei, com mil pulmões, o hino do meu país, de olhos fechados e com a mão no peito, lá em baixo. No campo. Que é céu. E é lá em baixo que está o sítio mais alto de mim. Onde posso sempre ser quem quero.

Houve sonhos que nunca saíram do sítio. Que só vivem em mim. Mas foram sonhados. E o sonho é um território muito grande do país que sou. E o mais verde. Onde há um rio a correr devagarinho.