Telma

Telma retirou o pé do pedal e deixou deliberadamente o carro ir abaixo, depois corrigiu a posição em que estava sentada e foi à procura de tranquilizar o amigo, que suava como se fosse de querer saltar do carro e não poder porque estava em andamento.

Era a primeira vez em que assumia a coragem de dar a António a oportunidade de se declarar. Até aí, assistira passivamente à contagem dos dias, sem no olhar dele vislumbrar uma declaração de intenções pela ação que gostaria de vê-lo pôr em prática. Conhecia-o desde o primeiro dia de aulas da escola do primeiro ciclo, mas afinal não tão bem como julgava, até terem tido o primeiro encontro e da parte dele não ter nascido a vontade do primeiro beijo, a selar uma relação que queria para a vida.

Anos oitenta. À época tocava com furor nas rádios o LP duma banda do Porto posto à venda numa lata, que era como quem produzia os discos achava que podia competir em criatividade com os autores das canções. Chamava-se “Cairo” e quase todas as canções vinham imbuídas do ritmo inebriante duma cidade que não dorme, como Nova Iorque mas felizmente sem a influência de gosto duvidoso dos primeiros rappers que estavam a começar.

Telma tinha por ele uma admiração sem par. Achava que ninguém podia competir com ele em matéria de beleza, e só não apreciava o facto de não poder focar-se com total atenção, quando de concentrava no rosto de formato oval e não podia simultaneamente ver ao detalhe os olhos, nariz, bochechas, orelhas e boca, contentando-se de imaginar que, por estar na sua presença,  o mais certo era estar a sorrir.

Uniam-nos laços duma forte amizade. Na verdade, mantinham-se unidos por uma relação inspirada num ideal romântico, mas que, por culpa dele da timidez dele, tardava em concretizar-se, se calhar tanto como quase sempre demora uma boa ideia a sair do papel, ou então a levar à prática a concretização dum projeto, ou quem sabe a encontrar em Portugal, uma obra pública terminada no prazo previsto sem derrapagens no valor orçamentado.

Naquela espécie de namorico, que se arrastou da adolescência à idade adulta, Telma e António, dispuseram-se a agradar um ao outro, valendo-se dos recursos de que dispunham: ele, na qualidade de rapaz espirituoso, dum apurado sentido de humor; e ela, evidenciando traços requintados que o inspiravam a dizer piadas de mais fino recorte. Na história de ambos, misturavam-se a amizade e o amor em percentagens tais, que estes dois ingredientes adicionados à receita dum bolo, bastariam para torná-lo doce sem ter de pôr um grama de açúcar.

No dia de saírem juntos, para ela mostrar-lhe que conduzia muito bem o carro dos pais, uma situação inesperada propiciou o surgimento de uma coisa há muito tempo esperada. À saída dum jantar de amigos, Telma tomou um caminho diferente a caminho de casa, e numa rua aonde se viam poucas casas, decidiu parar o carro, inesperadamente, sem vislumbrar nenhum obstáculo que obrigasse a reduzir a marcha, quanto mais travá-lo.

Ainda com o motor em funcionamento, engatou uma mudança e levantou bruscamente o pé do pedal direito do acelerador e ouviu-se um estrondo, seguindo-se um safanão acompanhado da sensação dum abalo sísmico que teve o epicentro situado no lugar do condutor. A magnitude do susto foi grande e no pensamento de António o efeito colateral de uma onda de choque, parecido com o efeito de embate dum camião nas suas traseiras, deve tê-lo feito temer a ocorrência de um tsunami.

Para sossegá-lo, Telma aproximou-se dele e assentou-lhe a mão no joelho, fincando nele um olhar de esperança naquilo que desejava ouvir, abrindo muito os olhos como se alargasse o leque de aceitação às suas propostas, dependendo de começar por ouvi-lo dizer que a amava.

Durante pelo menos três quartos de hora, o carro permaneceu estacionado naquele lugar, naquela berma de estrada aonde os dois se dedicaram a amar. E enquanto estivesse com ele, nada a faria pô-lo novamente em andamento, nem o passar das horas com medo de entrar tarde em casa, e muito menos ele pedir-lhe que o fizesse, só para ver se por causa da sacudidela a mecânica não tinha ficado danificada.

FIM