No tempo em que o Tom Sawyer vivia em minha casa – João Nogueira

Gosto de sonhos.

Noutro dia, por exemplo, sonhei que recebia o “Prémio Pessoa” das mãos do próprio. A audiência era composta por um público heterogéneo e com ligeiras diferenças de idade.
Na primeira fila, estavam o Eça e os Vencidos da Vida, com os penduricalhos do costume. Os bigodes, as bengalas, os monóculos e os narizes que nunca mais acabam. Como o meu.

Mais atrás, perdidos entre esquissos, rascunhos, guernicas e capelas sistinas, estavam o Picasso, o Dali e o Michelangelo, il più bel ragazzo di Roma.
No fundo da sala, e pouco satisfeitas com isso, estava um grupo de sufragistas americanas, que não respeitava o no smoking, obrigando o  Cesário Verde, coitadinho,  a mudar de lugar, servindo de pretexto ao portista do Miguel Sousa Tavares para pavonear o seu british accent. Do palanque, ouvi um “ do you have lights?” irrepreensível e com clave de sol no agá..

O sonho estava quixotesco. O meu inconsciente, filantropo, decidiu trazer o Sancho Pança para ajudar à festa. Na fase final do discurso vitorioso, e por uma questão de coerência, agradeci ao Tom Sawyer!

– Tooooom!

– Sim, tia Polly.

Não me esqueço disto. Nunca! Dê a vida as voltas que der. Dê eu as voltas que der.

Cresci aqui. Com os meus amigos. Cresci no Mississipi. Com o Tom. E com os amigos dele.

Corríamos como loucos, por cá. Por tudo e por nada. Como no Mississipi. Trepávamos pessegueiros. A seguir, fugíamos do dono. Ainda me lembro, caramba! Vinha atrás de nós. Era o Quim. Parece que o estou a ver. Berrava muito. E eu tremia muito. Na voz, o Quim tinha trinta mil sirenes, um holofote e um altifalante a dizer para pararmos. Em nome da lei! Mas ninguém nos apanhava. Éramos uma flecha. Uma seita de meninos bons. Que roubava pêssegos. E tangerinas. Que fazia de meias aos losangos, cheias de borboto, a melhor bola do mundo. E que tocava às campainhas. E fugia. Muito. Com medo. E com alegria. Um coração com tudo ao molhe lá dentro. E que batia. O que é raro.

-Toooooooom!

– Sim, tia Polly.

Não esqueço. Nunca. O tanas é que esqueço. Quem nunca viu Tom Sawyer que atire a primeira pedra. O primeiro paralelo.

Tom. A metáfora mais bonita da vida! Ou a vida como deve de ser. Com amigos. Porque quem tem amigos não precisa de procurar pela vida noutro sítio. Não anda com a casa às costas. Não precisa. Os amigos são a nossa casa. A nossa terra. A aldeia que nunca tivemos. A que tem neve no Natal.

Tenho trinta e três anos. Cada capítulo da minha vida é um naipe de copas.  Às vezes duque. Às vezes Ás. Às vezes nem uma coisa nem outra. Uma quadra. Ou uma sena, por exemplo. Que é melhor que nada. Que às vezes é o pior de tudo. Mas isso é a vida. Ganha quem tiver mais ases.

Como o Tom. Que gostava da Becky. Que gostava do Tom. Que era irmão do Sid. Que tinha óculos redondos. E o Huck. Que tinha uma cabana numa árvore. Que não era irmão do Tom. Mas era como se fosse. Tinham medo do Índio Joe. Ganhavam aos maus. Os maus perdem sempre. Até quando ganham. Como na vida. Porque ninguém pode impedir a Primavera de vir.

Caramba! Tenho saudades. De vos ver com os olhos de antigamente. Esses olhos, com golfinhos aos saltos lá dentro, perdi-os. Deixei-os ficar num sítio. E agora não sei ir para lá.

Vocês, aí na terra dos sonhos, onde só chovia para a seguir haver arco-íris e cheirinho a terra molhada, fizeram mais por mim do que qualquer compêndio, dicionário ou flexão de verbo irregular. Foram a minha escola. Foram mesmo.

Sejam bem-vindos os amigos das crianças. Instalem-se à vontade. Nem é necessário sacudirem as sapatilhas à entrada! E tu, meu querido Pina, que ziguezagueavas a tua caneta da mesma forma que as neguinhas da Baía sacodem o rabiote no sambódromo, quem me dera que estivesses aqui. Eras o primeiro a ser servido. E a ser ouvido. Escutado, aliás.
Nós, os pequeninos, gostamos do artesanato que fazias às palavras. Fazias tricô com elas. Devagarinho. A baloiçar na cadeira.

Como tu, só o Mark Twain. Deu-nos o Tom, caramba!

Procurem. Vasculhem. Peguem em mapas. Em óculos de ver melhor ao longe. Em telescópios. No que quiserem. Encontrem um catraio. Um só. Que prefira ir confessar os pecados ao senhor abade, a ir pinchar, brincar aos pontapés de bicicleta ou às corridas de Fórmula Um, em pistas desenhadas no chão, com giz branco . Como os meninos fazem.
Deus, se fosse pequenino, ia preferir fazer uma corrida de  mariposa com o Tom nas margens do Mississipi, empanturrar-se com bolos de chila na cabana do Huck e ficar corado com um beijinho da Becky,  a ser obrigado a berrar hossanas nas alturas. Aos sete anos! Sete!

Twain não era erótico a escrever. Não tinha o azul safira e os cavalos-marinhos de Sophia. Não era  Bocage, que colocava dois gramas de álcool por cada litro de sangue do leitor, a cada verso bebido.
Mas, para mim, lambareiro como os catraios, Twain foi o homem das linhas que esguichavam algodão doce e gomas de limão. E que nos levavam a dar uma volta. E que mostravam, sem mostrar, que a maior revolução de um homem é tornar-se livre. Só depois pode receber a Primavera.

-Toooooom!

-Sim, tia Polly.

Não esqueço. Nunca. O tanas é que esqueço.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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