Gosto de sonhos.
Noutro dia, por exemplo, sonhei que recebia o “Prémio Pessoa” das mãos do próprio. A audiência era composta por um público heterogéneo e com ligeiras diferenças de idade.
Na primeira fila, estavam o Eça e os Vencidos da Vida, com os penduricalhos do costume. Os bigodes, as bengalas, os monóculos e os narizes que nunca mais acabam. Como o meu.
Mais atrás, perdidos entre esquissos, rascunhos, guernicas e capelas sistinas, estavam o Picasso, o Dali e o Michelangelo, il più bel ragazzo di Roma.
No fundo da sala, e pouco satisfeitas com isso, estava um grupo de sufragistas americanas, que não respeitava o no smoking, obrigando o Cesário Verde, coitadinho, a mudar de lugar, servindo de pretexto ao portista do Miguel Sousa Tavares para pavonear o seu british accent. Do palanque, ouvi um “ do you have lights?” irrepreensível e com clave de sol no agá..
O sonho estava quixotesco. O meu inconsciente, filantropo, decidiu trazer o Sancho Pança para ajudar à festa. Na fase final do discurso vitorioso, e por uma questão de coerência, agradeci ao Tom Sawyer!
– Tooooom!
– Sim, tia Polly.
Não me esqueço disto. Nunca! Dê a vida as voltas que der. Dê eu as voltas que der.
Cresci aqui. Com os meus amigos. Cresci no Mississipi. Com o Tom. E com os amigos dele.
Corríamos como loucos, por cá. Por tudo e por nada. Como no Mississipi. Trepávamos pessegueiros. A seguir, fugíamos do dono. Ainda me lembro, caramba! Vinha atrás de nós. Era o Quim. Parece que o estou a ver. Berrava muito. E eu tremia muito. Na voz, o Quim tinha trinta mil sirenes, um holofote e um altifalante a dizer para pararmos. Em nome da lei! Mas ninguém nos apanhava. Éramos uma flecha. Uma seita de meninos bons. Que roubava pêssegos. E tangerinas. Que fazia de meias aos losangos, cheias de borboto, a melhor bola do mundo. E que tocava às campainhas. E fugia. Muito. Com medo. E com alegria. Um coração com tudo ao molhe lá dentro. E que batia. O que é raro.
-Toooooooom!
– Sim, tia Polly.
Não esqueço. Nunca. O tanas é que esqueço. Quem nunca viu Tom Sawyer que atire a primeira pedra. O primeiro paralelo.
Tom. A metáfora mais bonita da vida! Ou a vida como deve de ser. Com amigos. Porque quem tem amigos não precisa de procurar pela vida noutro sítio. Não anda com a casa às costas. Não precisa. Os amigos são a nossa casa. A nossa terra. A aldeia que nunca tivemos. A que tem neve no Natal.
Tenho trinta e três anos. Cada capítulo da minha vida é um naipe de copas. Às vezes duque. Às vezes Ás. Às vezes nem uma coisa nem outra. Uma quadra. Ou uma sena, por exemplo. Que é melhor que nada. Que às vezes é o pior de tudo. Mas isso é a vida. Ganha quem tiver mais ases.
Como o Tom. Que gostava da Becky. Que gostava do Tom. Que era irmão do Sid. Que tinha óculos redondos. E o Huck. Que tinha uma cabana numa árvore. Que não era irmão do Tom. Mas era como se fosse. Tinham medo do Índio Joe. Ganhavam aos maus. Os maus perdem sempre. Até quando ganham. Como na vida. Porque ninguém pode impedir a Primavera de vir.
Caramba! Tenho saudades. De vos ver com os olhos de antigamente. Esses olhos, com golfinhos aos saltos lá dentro, perdi-os. Deixei-os ficar num sítio. E agora não sei ir para lá.
Vocês, aí na terra dos sonhos, onde só chovia para a seguir haver arco-íris e cheirinho a terra molhada, fizeram mais por mim do que qualquer compêndio, dicionário ou flexão de verbo irregular. Foram a minha escola. Foram mesmo.
Sejam bem-vindos os amigos das crianças. Instalem-se à vontade. Nem é necessário sacudirem as sapatilhas à entrada! E tu, meu querido Pina, que ziguezagueavas a tua caneta da mesma forma que as neguinhas da Baía sacodem o rabiote no sambódromo, quem me dera que estivesses aqui. Eras o primeiro a ser servido. E a ser ouvido. Escutado, aliás.
Nós, os pequeninos, gostamos do artesanato que fazias às palavras. Fazias tricô com elas. Devagarinho. A baloiçar na cadeira.
Como tu, só o Mark Twain. Deu-nos o Tom, caramba!
Procurem. Vasculhem. Peguem em mapas. Em óculos de ver melhor ao longe. Em telescópios. No que quiserem. Encontrem um catraio. Um só. Que prefira ir confessar os pecados ao senhor abade, a ir pinchar, brincar aos pontapés de bicicleta ou às corridas de Fórmula Um, em pistas desenhadas no chão, com giz branco . Como os meninos fazem.
Deus, se fosse pequenino, ia preferir fazer uma corrida de mariposa com o Tom nas margens do Mississipi, empanturrar-se com bolos de chila na cabana do Huck e ficar corado com um beijinho da Becky, a ser obrigado a berrar hossanas nas alturas. Aos sete anos! Sete!
Twain não era erótico a escrever. Não tinha o azul safira e os cavalos-marinhos de Sophia. Não era Bocage, que colocava dois gramas de álcool por cada litro de sangue do leitor, a cada verso bebido.
Mas, para mim, lambareiro como os catraios, Twain foi o homem das linhas que esguichavam algodão doce e gomas de limão. E que nos levavam a dar uma volta. E que mostravam, sem mostrar, que a maior revolução de um homem é tornar-se livre. Só depois pode receber a Primavera.
-Toooooom!
-Sim, tia Polly.
Não esqueço. Nunca. O tanas é que esqueço.
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
Visite o blog do autor: aqui
Sempre, sempre brilhante! Tom Sawyer, o meu herói da infância, e João Nogueira, o meu herói para a vida! 😉
Elsa Brilha, aquele beijinho. 😉
Só tenho o seguinte a dizer: “Não me esqueço nunca de ler as crónicas do João Nogueira! O tanas é que me esqueço!”
🙂
Grande Ricardo. És o maior! 🙂 Muito obrigado. Um grande abraço.
Olá João! Não podia deixar de agradecer-lhe… Obrigada por plantar sorrisos nos corações! 🙂
Muito obrigado, Adriana Guerreiro. Fico muito contente.
Quem nos traz imagens e sentimentos destes todas as semanas sabe sim senhor voltar para “esse sítio”… Creio que até nunca saiu daquele mundo mágico! 😉
Olá, Ana Isabel. Um abraço para si e muito obrigado pelo apoio.
Brutal… Um texto que sabe realmente a algodão doce e a gomas de limão;) Parabéns, ao meu herói da escrita: João Nogueira!!
Mana, um beijinho grande.
Boas João. Excelente texto (como sempre) mas desta vez tenho que discordar contigo. o Tom Sawyer vivia era na minha casa! Quanto muito ele ia aí ao Porto passar um dia ou dois. Eheh. Hug
Gil, ok, partilhemos o Tom, então. Obrigado pelo comentário e continuação de grandes crónicas. Um abraço.
Eu que não sou muito adepto das leituras(tirando Biografias do Deco,Pinto da Costa e um livro de seu nome “Queimada Viva”),não posso,nem deixo de ler uma crónica deste “rapaz” de seu nome João…
Muitos Parabens ao “maisopinião” por ter este grande escritor consigo!!!
Ah e só mais uma coisa…
“Os Maias” na escola???O “tanas” se o li 🙂
Cumprimentos
Marcos, muito obrigado. Que grande comentário. 🙂 “Os Maias na escola??? O “tanas” se o li 🙂
Olha que vale a pena 🙂
Um forte abraço.