1224442984

Tou com Covid … e depois?

Ao longe, ouvi alguém chamar-lhe enfermeira Natália e em seguida ela responder num Português com sotaque ucraniano, que nem em tom de comédia teria conseguido reproduzir para imitar o presidente Putin numa daquelas intervenções públicas em que surge, de ar pouco convincente, a gabar o mérito de conseguir vacinar a população com a vacina Sputnik.

Soube mais tarde, que a enfermeira Natália tinha vinte e cinco anos e, à semelhança da maioria dos compatriotas de que eu ouvia falar, abandonara a pátria à procura de amealhar dinheiro para uma velhice que, no caso dela, ainda distante, jamais implicaria a perda de algum dos atributos que revelara em jovem.

Das primeiras coisas em que reparei foi em que era afável e tinha um temperamento dócil. Apreciavam-no os utentes do hospital e, em particular, os familiares dos internados em estado mais grave, há tanto tempo hospitalizados que era como se, a par da doença Covid, a afastá-los do regresso rápido a casa, ainda o pessoal médico tivesse dúvidas acerca de saber se haveria lá em casa alguém que pudesse prestar cuidados de saúde tão bem como ela.

Enquanto me olhava a perscrutar alguma alteração em comparação com o meu estado na véspera, apontou-me um termómetro, que enfiei no sovaco para medir a temperatura a partir das axilas, e, no fim da visita, deu-me uns comprimidos azuis a que eu chamava Viagra, porque vindos dela me excitavam mais do que a ideia de, fora do ambiente hospitalar, nos encontrarmos um dia ao jantar, a fim de debatermos os avanços científicos dos últimos anos.

Pudesse eu vê-la melhor e descrevê-la-ia não como imagino, mas tal e qual desejo ardentemente que seja, no dia em que obtiver alta e puder levantar-me para vê-la de corpo inteiro; medianamente alta, relativamente magra e inequivocamente elegante, como uma mulher em cuja presença nos sentimos mais propensos a achar que o mundo é perfeito.

Deitado, ainda só lhe vejo o rosto, mas antevejo o corpo a partir do olhar, e Natália olhava-me com um interesse crescente quando dalgum médico escutava dizer que se notava uma melhoria, como se da observação demorada dum paciente nascesse uma ideia rápida de salvá-lo. Tinha olhos preciosos, como dois diamantes esculpidos numa mina a céu aberto, sob os auspícios do sol que a fizeram branca como ao mármore em que na antiguidade eram esculpidas as estátuas das deusas.

Quis perguntar-lhe como se sentia na pele duma mulher assim, mas contive-me e limitei-me a sorrir quando perguntou se dormira bem. Sentia-me menos cansado, mais propenso a conversar, mas tinha menos certezas acerca de alguém estar disposto a ouvir-me falar do tempo em que era saudável e, enquanto revendedor imobiliário, acreditar que tudo o dinheiro podia comprar, até o estado de saúde de alguém.

Revirei os olhos e observando em redor, calculei que num espaço duns trinta metros quadrados cabiam as quatro camas da enfermaria e, distribuídas simetricamente, as restantes mesas com equipamento de apoio, que o pessoal médico e auxiliar serpenteava como se fosse obstáculos ao exercício normal das suas funções.

Ouvira a respeito de Natália, que fora transferida para a enfermaria de doentes Covid há dois meses, após um ano nos Capuchos, antes de se decidir pela especialidade de enfermagem médico-cirúrgica, que forçosamente tivera de adiar devido à pandemia. Por mim, o que não queria adiar era regressar são a casa, ao convívio dos familiares e amigos que, quando encontramos nalgum improvável, nos faz ficar mais propensos a achar que o mundo é um lugar pequeno.

Doía-me o corpo todo e tinha espasmos de febre quando liguei para a Linha de Saúde. Mandaram.me fazer um teste e dali a diagnosticarem-me Covid foi um pequeno passo, curto passo no achado duma doença para a qual a descoberta da cura representaria um passo gigantesco da humanidade. Como num voo sem escala, dei por mim a saltar, sem direito a pulseira de qualquer cor, da pequeníssima sala de triagem do hospital à entrada das Urgências, para uma enfermaria de doentes suspeitos de terem covid. Vi-me de forma rápida afastado de casa e rodeado apenas de rostos familiares de máscaras iguais aos das pessoas que já estava acostumado a ver na rua.

Custou-me superar a fase crítica da doença. Em poucas horas sofri um agravamento dos sintomas tal, que fui levado à UCI e, não se de forma induzida ou não, passei os três dias seguintes a dormir profundamente, até à manhã do dia em que a enfermeira Natália me despertou e sorri como se me lesse no pensamento, que haveria de dedicar-lhe um poema em que poria a rimar a sua desenvoltura com algum dos meus atributos em que ela reparasse quando desse por mim a observá-la nas calmas.

Hei-de sair brevemente deste hospital e, seja de noite ou de dia, hei-de vir esperá-la à saída do turno, mais vezes do que ao ladrão mais atrevido da história algum dia passou pela cabeça voltar a um lugar do crime. E não é crime nenhum querer ver-lhe o rosto sem máscara, de sorriso rasgado como quem lê no prefácio dum romance, que são de amor todas as histórias inspiradas nas personagens reais que lutam diariamente para nos salvar.

FIM