A tradição do consumo e do abuso do Álcool – legal e letal

O álcool é a droga ou substância psicoativa mais vendida em Portugal, e em muitos países ocidentais onde o consumo da bebida alcoólica faz parte da tradição e cultura dos povos.

Muito se questiona sobre a despenalização ou mesmo a legalização de outras substâncias, mas nos países ocidentais raramente se questiona a venda de bebidas alcoólicas e o seu consumo…

Pelo contrário, em Portugal, país de vinhas e negócio do vinho próspero, jamais se poderiam questionar sequer os seus consumos…

O que acho engraçado, sem piada alguma, é que o álcool tem sido responsável pela dependência de uma imensa população ao longo dos anos, grande parte dela sem nunca achar sequer que é alcoólica ou dependente e sem sequer procurar ajuda…

O consumo regular e o abuso do álcool é frequentemente responsável por alteração do pensamento e dos comportamentos, e, muito provavelmente um dos maiores responsáveis por grande parte da violência doméstica, por exemplo…Sob o seu efeito a conduta altera-se, a “paranóia” acentua-se, a atividade delirante está frequentemente presente…Também a letargia, ou pelo contrário a euforia podem estar presentes, e a violência em geral, comportamentos disruptivos ou mais impulsivos, agressividade, condução perigosa, atividade sexual desprotegida e de risco, promiscuidade sexual, dentre muitos outros comportamentos estão associados ao consumo exagerado de álcool, mesmo em quem não é clinicamente designado como “alcoólico”.

Porque escrevo sobre isto hoje?…
Porque em Portugal, país de forte tradição e cultura “alcoólica”, é quase impossível separar onde o consumo moderado e social do álcool termina e o abuso ou dependência começa.

Os jovens e as jovens, alguns antes dos 18 anos, bebem por competição até, ou apenas para ficar “embriagados”, são cada vez mais uma realidade de vários países, sem que a sensibilização e prevenção do uso desta substância seja feito.

A população adulta é frequentemente consumidora de álcool, mesmo algumas pessoas já em fase mais tardia da vida (quando lá chegam)…

Apesar de ser uma substância legal e incentivada até socialmente, e, pior!, transversal às várias faixas etárias, transversal ao género, e com a agravante de ser transversal também a todos os estratos sócio-económicos, a todos os estratos sócio-culturais, é uma substância letal, que, para além do que já se referiu, é ainda responsável pela morte celular, inclusive de células cerebrais (neurónios), contribui e potencia vários cancros, é responsável por doenças do fígado graves como a cirrose, aumenta o risco de acumulação de “gorduras” nas artérias funcionando como fator de risco para AVC e Doenças cardíacas, dentre outras. Nas grávidas pode ainda produzir atraso no desenvolvimento mental do feto, irreversível, dentre outros malefícios.

Se muitos estudos apontam para o eventual benefício do “copo de vinho tinto”, também é verdade que raramente os consumidores de álcool “ficam por aí”, e habitualmente bebe-se mais, muito mais.

Os acidentes que seriam evitados, se ao volante não se sentassem tantas pessoas com abuso do álcool…

As doenças que poderiam ser evitadas ou pelo menos estarem presentes em menor escala na população, se o consumo fosse realmente mais baixo…

E quantos milhões não seriam ganhos pelo “negócio do álcool” se as pessoas reduzissem o seu consumo…
O pior é que a maioria de quem consome bebidas alcoólicas não se revê no que escrevo…acham sempre que isto é para quem exagera, para os outros, porque nunca se reconhecem como dependentes…

O sinal de alerta para mim, relativamente a estas pessoas que não são alcoólicas mas que podem ter já uma dependência do consumo de álcool (que é pelas próprias negada à partida), e é verdade que utilizo este tipo de “auto-questionamento dirigido” na prática clínica para que a própria ou o próprio se questione acerca do efeito psicológico por exemplo do álcool na sua própria vida e na sua conduta, passa pela resposta sincera (de si para si) a algumas questões básicas como:
1 – Consumo álcool diariamente? Por exemplo à refeição?
2 – Consumo álcool todas as semanas?
3- Um jantar não pode ser divertido se eu não beber álcool?
4- Uma festa não tem interesse se não tiver consumo de álcool?
5 – Um jantar romântico precisa de vinho a acompanhar ou outra bebida alcoólica?
6 – Consigo estar quantos dias seguidos bem disposto e a sentir-me bem comigo mesmo sem “tocar numa gota de álcool”?
7 – Honestamente consigo sentir-me bem sem álcool e nem sequer pensar nisso – ou seja corta o hábito sem problema? Ou isto constitui um problema?…

Quando as pessoas testam por exemplo estas questões, respondem-nas de si para consigo, e testam nas suas vidas se podem estar, e se estão bem, sem beber álcool, muitas vezes são surpreendidas porque percebem que há uma dependência sim…frequentemente ela é social e psicológica, mas nem por isso deixa de ser uma dependência, que, como qualquer dependência deve ser designada enquanto tal, e as pessoas devem ser ajudadas a parar esta dependência.

Quando a dependência é real, física e psicológica, digamos que o verdadeiro alcoolismo, o adeus é frequentemente para sempre. E assim tem que ser, sob pena de qualquer recaída ser um regresso.
Quando a dependência ainda é ligeira, e eventualmente social e psicológica, deve ser olhada de forma honesta e trabalhada no sentido eventualmente de deixar de ser.

O que me impressiona em Portugal, por exemplo, e de resto na Europa em geral, é que as drogas são todas tratadas como tal, sempre, até a nicotina, mas o álcool não…Só num extremo terrível há o incentivo a deixar.
Falha-se na prevenção, sensibilização. É socialmente aceite, e estupidamente considerado normal e até tradicional…Os e as que não bebem em determinados eventos são até – imagine-se – “olhados de lado”, como se um sumo natural de frutos ou água fossem em algum aspeto menos positivos do que o álcool…isto é um absurdo naturalmente…Mas as jovens e os jovens são muitas vezes pressionados por este estigma absurdo…e bebem por isso mesmo. Um erro social, para mim, com custo graves.

Claro que se devem respeitar as culturas dos povos, mas nesta matéria, talvez fosse bom mudar mentalidades…É um exagero na nossa cultura, como noutras, o uso e abuso do álcool…

A saúde da mente e do corpo paga caro por isso e fazem-se vítimas inocentes pelo caminho, muito mais vezes do que deveria ser possível.

Estar sóbrio e lúcido é frequentemente a melhor forma e a mais honesta de estarmos connosco e com o mundo…
Se é menos divertido?…Talvez seja…para quem depende dele de alguma forma…Para quem não depende, a diversão e os bons momentos nada têm a ver com o consumo…têm a ver com o que de melhor temos – essa imensa capacidade de sermos o que quisermos, de estarmos bem, até de nos alienarmos por momentos, sem risco algum associado…essa imensa capacidade que o nosso cérebro, a nossa mente nos dá!
Felizmente somos muito mais do que aquilo que consumimos…Mas paga-se caro aquilo que se consome…muitas evzes com a vida, e no caso do álcool, não só a do próprio, mas de quem passa pelo seu caminho, ou o partilha…
E se hoje parássemos um pouco, e por um momento nos olhássemos…e também à nossa volta…
Talvez hoje possa ser um “virar de página” na vida de alguém…para melhor…