A última birra de Jabbari

A notícia correu mundo: Reyhaneh Jabbari, a jovem iraniana de 26 anos, que em 2007 matou o cirurgião, e antigo funcionário dos Serviços Secretos iranianos, Morteza Sarbandi, foi enforcada no passado sábado.

Que haja gente a indignar-se com o facto de, em pleno século XXI, ainda existirem países que não aboliram a pena de morte; ou que haja gente que se emociona com a morte de outrem, mesmo que esse outrem seja o ser mais execrável do mundo, é o tipo de comportamento afectivo que eu entendo e que não tenho interesse em discutir aqui.

Porém, há qualquer coisa que me escapa quando vejo meio mundo emocionar-se com um vídeo, no qual Jabbari se despede da sua mãe e lhe transmite a sua última vontade: doar todas as partes do seu corpo a quem delas possa precisar.

Ora, vamos por partes. Em 2007, então com 19 anos, a jovem Jabbari foi contratada por Sarbandi para redesenhar o seu consultório. Entretanto Sarbandi aparece morto, com uma facada espetada nas costas, e Jabbari é a principal suspeita. Após as investigações periciais a jovem é acusada do crime de homicídio. Perante tal acusação, Jabbari disse-se não apenas inocente, como também indicou às autoridades o verdadeiro autor do crime: um terceiro elemento, do sexo masculino, que também se encontrava na clínica de Sarbandi, aquando da sua morte. Contudo, sobre este terceiro elemento Jabbari nada mais acrescentou: disse apenas que ele existia, que ele assassinou Sarbandi, e que, para mal da sua vida, ela era incapaz de o identificar.

Interrogada e pressionada pela polícia e pelo Ministério Público iranianos (felizmente alguém sabe como lidar com gente malandra), as incongruências da narrativa sobre o terceiro elemento cedo se tornaram demasiado óbvias, e então a jovem Jabbari lá deixou cair por terra a sua teoria do Espírito Santo.

Mas então quem matou Sarbandi? E agora espantem-se com a resposta da moça: “Fui eu, mas foi em legítima defesa”. É que ao que parece o senhor Sarbandi era meio que para o atrevidote, e terá tentado violar a pequena. Repare-se: terá tentado, mas é um facto que não violou. Sim, terá tentado: mas nenhuma marca, ou sinal, de violência foi detectado no corpo da jovem. Terá tentado: mas eu só sei que ele tentou através do relato de uma mulher que começou por se dizer inocente e apontou as culpas do crime para uma terceira pessoa. Terá tentado: mas isso só me é dito pela mulher que dois dias antes comprou a faca que estava espetada nas costas de Sarbandi. Sim, talvez ele tenha mesmo tentado, mas a única coisa certa é que ele foi realmente assassinado e agora não se pode defender.

Quando vejo casos como este aparecerem na comunicação social, há qualquer coisa em mim que se incendeia e que não me permite partilhar do sentimento comum e generalizado. Talvez isso se deva ao facto de eu não ser uma pessoa instruída e civilizada. Certamente que se eu tivesse um curso superior em Telespectadoria Desinformativa também me emocionaria com o vídeo de Jabbari. Mas assim, da maneira bruta que sou, todo o meu coração está com Sarbandi e com a sua família. Que triste destino o seu: ser apresentado ao mundo como um violador, ser assassinado pelas costas, e jamais poder defender-se de tal calúnia.

Uma coisa é certa: não devemos nada a Jabbari. Mas a Sarbandi devemos, pelo menos, a presunção da sua inocência. E a verdade seja dita: Sarbandi nunca disse a ninguém que foi um terceiro elemento que tentou violar Jabbari; e Sarbandi também nunca comprou um pénis que depois haveria de aparecer espetado no corpo de Jabbari.

Sarbandi podia ser eu; podias ser tu; o teu pai; o teu melhor amigo. Pensa nisso, antes de te emocionares com os vídeos que te dão a ver, tão de si cheios de uma moral de Hollywood.

No entanto, resta ainda uma última coisa que intriga a minha compreensão. No vídeo que agora correu mundo, Jabbari pede à sua mãe que tudo seja feito para que todas as partes do seu corpo sejam doadas a quem delas possa precisar. Olhem que louvável, o gesto da piquena. Mas eu pergunto-me: o que mudou entretanto, querida Jabbari? Porque dás agora, a quem quer que precise, todas as partes do teu corpo, quando na verdade, há sete anos, tiraste a vida a um homem que quis, desejou, ou precisou (a crer nas tuas palavras), somente a título de usufruto temporário, apenas um dos teus órgão?

Não sei se Jabbari foi vítima de uma tentativa de violação.

Mas sei que Sarbandi foi vítima de homicídio.

E toda a postura desta jovem iraniana lembra-me aquelas pessoas birrentas que estão habituadas a fazerem o que querem, só quando querem, sem atenderem nunca às necessidades dos que as rodeiam. Por tudo isto (e isto custou a vida de um homem que presumo inocente, até que se prove o contrário), não consigo ver na última doacção de Jabbari nenhum sentimento humano superior; mas vejo, isso sim, um último capricho. Uma última birra.

Se a pena foi pesada? Não sei. No entanto há uma coisa que para mim é certa: pesado, pesado, é quando não existe pena nenhuma.