Um abraço dentro do peito

Escrevo à tua exclusividade. Desde sempre. Com este corpo que me acompanha desde Mil Novecentos e Oitenta e seis. O meu. Assim como esta discrepância de cabelo. A farta careca cada vez mais a descoberto. O voar dos tempos. Do alto da montanha da vida. Que sobe devagar. Que desce ensombrada pela aceleração mortal. A normalidade da existência.

Amizade é o que cresce dentro do teu peito. Um dia após o outro. Segundo após segundo.

Marta. Senhora. Patroa. Dona de casa. Protetora. Que propícia calma nos momentos mais arriscados da vida. Que estabelece boas ligações. Como o Pessoa.

“Quero ser o teu amor amigo.
Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amor amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…”

Afirmam que os amigos não se distinguem, reconhecem-se. Nada mais apropriado. És de pouca elevação. Baixinha. Desigual ao que nos une. Cinco dedos entrelaçados nos meus. Mesmo quando não estás. Tocamos a alma. Porque quem ambiciona um amigo, não importa onde se encontra. Em tempo algum sofrerá de isolamento. Poderei findar de suspiros saudosos, mas não estarei solitário. Estás aqui. Longe da vista. Dentro do coração.

Amo-te. Não encontro outra forma de me relacionar contigo. A não ser através do amor. Do afeto íntimo. Não sei dizer só por dizer. O amor vê-se com os olhos da alma. O que realmente importa. Do alto da Margem Sul do Tejo. Do topo da gente boa.

Ofereço apreço quando turvamos o Festival de Almada. Ou abanamos o capacete no Super Bock Super Rock. Ou escorregamos os pés no Seixal Jazz. E percorremos o tempo. De cultura em cultura. De semelhança em semelhança.

Aceleramos o carro. O meu. O meu preto. Não da praia. Mas de origem. Apressuramos em direção ao Castelo de Palmela. A duzentos e quarenta metros de altura. Com uma vista privilegiada de Sines a Sintra. Divagamos os pensamentos na Torre de Menagem. Reforçada no século XVII. Vislumbramos com exatidão o interior gótico da Igreja de Santiago de Palmela. No exterior, extraímos as já conhecidas fotos em movimento. As de meia hora cada uma. Eternizamos os segundos e rimos à gargalhada. Colados ao Miradouro. De verdes brilhantes. A Serra de S. Luís. Arrábida. Com o Rio Sado a completar a moldura principal de uma vida só nossa. Os aclamados passeios intemporais.

Horas depois, pela fresca, o Forte de São Filipe. Setúbal. Os teus longos fios de cabelo a observarem a inigualável Troia. Repleta de cores vivaças. De um outro prisma; as imponentes telhas laranjas da cidade. O azul marinho do Rio Sado. O Oceano Atlântico. E a língua falante de Troia. A inspiração presenciada no Castelo de Santelmo (Nápoles, Itália). O respirar intenso na Capela revestida de azulejos de Policarpo de Oliveira Bernardes. Azulejista português.

A amizade é uma longa viagem. Percorrida de corpos e almas desvendadas. Despida de segredos. A amizade são pessoas com pessoas dentro. Que vivem por fora, baseadas no interior humano. Tu. Marta Cardoso. A amizade, quando verdadeira, é definitiva.