Um carro do Benfica, o Zé Carlos e Deus. O de cada um. – João Nogueira

Pretos. Brancos. Bonitos. Feios. Assim-assim. Ateus. Crentes. Nem uma coisa nem outra. Uma coisa em comum. O Evereste. É a viagem da vida de cada um de nós. O Evereste. Uma espécie de céu. Parece que Deus está ali à mão. Ou ali ao pé. Inspiras frio, as pernas bambam, o cabelo fica anárquico, um fio para norte, outro para sul, pões-te em bicos de pés, esticas o braço até começar a doer e tocas Nele. Em Deus. No de cada um. Todos temos um. Até os que pensam que não. Como eu.

A Elsa diz que eu sou o ateu mais católico do mundo. Mas eu não valorizo muito isso. Ela diz coisas muito estranhas. Noutro dia, por exemplo, eu ia a conduzir o carro dela e o Porto marcou um golo. Buzinei, claro. Uma buzinadela rápida, que não durou mais de treze minutos. Trinta, no máximo. Ela, que não é daltónica mas só vê vermelho, disse para eu parar com aquilo, que o carro dela era do Benfica. E ferrenho!

O Evereste não é um Código Postal. Não tem morada. É o que nos faz feliz. É quando se voa sem sair do sítio. Quando se flutua com os braços bem esticadinhos, no Pacífico, com o sol a bater na cara. É quando os gigantes e os fantasmas que vivem nos olhos arrumam as tralhas e vão à vida deles, com o rabinho entre as pernas. É quando os olhos passam a ser praia. Ou quando és o Vasco Santana de um teatro cheio. Ou Bancadas, Superiores e Camarotes a gritar pelo teu nome, enquanto ergues a taça, num domingo de sol. Ou de chuva, é igual. Ou outra coisa qualquer. Que te faça bem. Porque a vida não é pela esquerda ou pela direita. Tem quatro mil caminhos. Até quando te perdes estás no bom caminho. Só se perde quem sabe para onde quer ir.

Deus, o meu, são pessoas. As minhas. Não são Todas Poderosas. Às vezes acertam. Às vezes falham. É a elas que faço orações. À minha maneira, claro. O Zé Carlos, por exemplo. É um pedaço de Deus. Do meu. É meu amigo desde o tempo dos Romanos. Foi sempre alto, mas tem ficado maior com o tempo. Não em altura, atenção. Eleva-se e eleva os outros, sem fazer nada de especial. E isso torna-o especial.

Lembro-me dele há vinte anos. Sem barba, com buço, aos berros, com os dois braços tesos no ar, numa aula de Religião e Moral. Tinha um auscultador escondido, enterrado no ouvido direito e tinha sido golo do Benfica. O professor falava de profetas. O Zé, coerente, berrava pelo Isaías, autor do golo. O professor apreciou o entusiasmo e nomeou-o delegado de turma. Vitalício. Ainda hoje, se for à escola,  é delegado do 7ºQ.

O Zé. A Ana. A Elsa. O meu pai. A minha mãe. O Pedro. O Sérgio.O Luís. Sem saberem, são o meu Natal. E Carnaval. Todos os dias. Sem darem por isso, põem-se em fila, do mais pequenino para o maior, e entrelaçam as mãos para que eu possa meter lá os pés e trepar para espreitar o mundo. Outras vezes, dobram-se, chegam com os dedos às pontas dos pés e eu, a correr como um desalmado, meto as mãos nas costas deles, faço força e voo por ali fora. Eu faço o mesmo por eles. Sem darmos por isso. A vida é ver mais longe. Com os nossos por perto.

O meu Deus não existiu sempre. E um dia vai deixar de existir. Não vai viver para sempre. O coração vai deixar de galopar. Amanhã um, depois de amanhã outro. É a vida. Aquela que julgamos que nunca vai acabar. Aquela que é pista de aviões para os sonhos. A vida do Evereste. Que é o topo. E o topo, por mais filosofia que tenha, é estarmos juntos. À mão de semear uns dos outros, enquanto nos temos. Ora a rir, ora a chorar. Ora nem um coisa nem outra.

Desperdiçar os nossos é deixá-los morrerem-nos antes do tempo. E depois não há volta a dar.  Só há a volta ao inferno que a vida dá. Há uma parte do filme em que eles não vão estar lá. Que é quando fazias qualquer coisa para que estivessem. Aí morres sem morrer. Porque desperdiçaste. Dos nossos cuida-se, caramba! São a nossa casa.

Foi no Natal, catraio, cachopo, que comecei a compreender o amor. Não por Deus. Pelas pessoas.

Lembro-me de uma mesa redonda, de pessoas a rir, de comidinha boa, da minha irmã no berço, a cheirar a bebé, perto de meia-dúzia de rabanadas! Lembro-me do meu avô, feliz da vida, a deitar mais azeite nas batatas e a espremer alho. Feliz. Por estar com os dele. Lembro-me da minha mãe, com o braço entrançado no braço do meu pai, que tinha um bigode que se ria para mim. Lembro-me de mim, besuntado de gema de ovo, a pedir para abrirmos as prendas. Lembro-me de me engasgar com um pinhão. Lembro-me da minha prima Joana e do meu primo Pedro. Lembro-me de olhar para um lado. Depois para o outro. Os meus olhos pequeninos viram outros olhos. Bem abertos, bem vivos. Olhos com um coração dentro. Também ouvi a melhor música do mundo. A de quem ri porque está feliz.
Foi numa noite de Natal, cá em casa, com cheirinho a azeite fervido, que eu comecei a perceber o que era o amor. Pelas pessoas.

Foi nessa noite que vi Deus pela primeira vez. Aquele em que acredito.

Os meus.

 

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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