Um tiro no escuro

O tiro falhado em cheio na cabeça do candidato, fez a bala acertar em cheio num balão que estoirou como se fosse uma bomba, despertando quem dormitava enquanto se fazia ouvir na sala o pomposo discurso do candidato do PS a Primeiro-ministro nas próximas eleições.

Último sábado do primeiro mês de pé campanha no lugar de Prainha, uma aldeia de montanha situada num Concelho a escassos quilómetros da fronteira com a vizinha Espanha.

Ao estilo de candidato popular, o líder socialista António Costa, chegara, envergando o traje casual das sextas-feiras em que não passava na Sede do Largo do Rato para tratar de assuntos importantes, logo a seguir ao almoço, sentado no lugar do pendura de um automóvel de alta cilindrada que, ainda ele não estava no Governo, e já se equiparava ao de um ministro cujo nome encabeçasse a lista VIP de contribuintes das Finanças, para ninguém se lembrar de investiga-lo tentando descobrir onde tinha ele conseguido juntar tanto dinheiro para o comprar.

Trazia umas calças de ganga largueironas, sandálias e uma camisa de linho apertada com um bolsinho dentro do qual uma carteira com dinheiro não podia conter mais do que o ordenado médio mensal dos portugueses que trabalham no setor privado, trocado em cinco notas de cem ou uma de quinhentos.

Ágil, saiu do carro mal o motorista abriu a porta do seu lado e acenou sorridente ao povo que o aguardava expectante, como se, por ser àquela hora, os que ainda não tinham começado a fazer a digestão, esperassem que ele lhes trouxesse uma especialidade alfacinha para comerem à sobremesa, em vez da fruta da região de que já estavam a ficar saturados.

Fazia um calor sufocante como há muito não se via. Um dia de estio ao qual ninguém escapava impune, que é como quem diz, sem a sensação de ter passado umas horas no inferno como se estivesse a cumprir alguma espécie de penitência pelos pecados que cometera até esse dia.

A maioria das pessoas, que aguardavam há mais de uma hora, eram idosos que simpatizavam com qualquer força política desde que os levasse a passear fora e depois lhes pagasse o almoço. Para estarem ali, um número significativo número deles tinha perdido pelo menos uma hora de sono e agora queriam ser compensados por essa perda. A uns, ele podia prometer aumentar a reforma para ganharem mais uns trocados, mas a outros, melhor seria garantir que melhoraria a economia para conseguirem arranjar emprego os filhos e as noras deles que estivessem desempregados, pois eram eles com as suas parcas reformas de miséria que os sustentavam enquanto não superassem a crise.

Em conjunto, foram dali todos para uma receção no salão nobre da Casa do Povo, onde o presidente da Junta se propunha falar para silenciar os detratores da ideia de aproximar o político do povo e todos verem que não diferia o que ele dizia, das anteriores promessas feitas por alguns candidatos do seu Partido que, embora tendo chegado a ser eleitos, deixaram para ele resolver, ao nível da economia e não só, os principais os problemas que foram encontrar.

Ladeado por sua excelência o presidente da Junta e pelo vogal concelhio para as feiras de rua e mercados, Costa rompeu caminho pelo meio da multidão, encabeçando uma coluna de apoiantes que entre vivas ao seu nome e ao de todos os seus antecessores no cargo, de punho erguido ainda arranjavam tempo para homenagear o mais mediático fundador do Partido que recentemente, nos órgãos de comunicação social, dera a entender que andava com ganas de esmurrar o atual primeiro-ministro que era da coligação liderada pelo PSD.

Ao sol, as passadas lentas dos membros da comitiva atenuavam a possibilidade de o político sorridente mas cansado chegar ao destino encharcado em suor, isto é, de camisola interior colada ao corpo como se para lha tirarem se vissem forçados a arrancar-lhe a pele.

Tinha a esperá-lo mais à frente, no adro da Igreja paroquial, outro comité de boas-vindas onde marcavam presença um sacerdote da Igreja, elementos da Comissão de Melhoramentos dos Acessos por Estrada Alcatroada à Aldeia, o comandante de bombeiros do quartel da área de influência e uma fanfarra de cinco músicos que desafinavam um minuete de Bethoven.

Na Casa do Povo, todos tinham à disposição uma mesa farta, com bebidas frescas, pão e muitos salgadinhos, olhando para a qual Costa não ficaria a conhecer melhor a gastronomia local, porque, encomendadas a uma senhora da cidade, havia quase somente chamuças, mandadas fazer de propósito por se julgarem ser uma coisa do seu agrado.

Brindando à vitória nas legislativas vindouras do outono, alguns empregado com a farda de um restaurante local, serviram espumante de má qualidade, numas taças que devem ter sido compradas juntamente com ele, com o dinheiro que sobrou das rifas que sortearam um cabaz de compras no Natal, numa iniciativa de tão pouco sucesso que o dinheiro arrecadado não deu para comprarem melhor.

Foi então tempo de Costa improvisar um discurso de agradecimento, dirigindo-se aos presentes mas a pensar também nos ausentes, concretamente nas promessas de campanha que melhor do que ele os candidatos de outros Partidos que ali fossem pudessem fazer no intuito de lhe roubar os votos que ele gostaria de contabilizar a seu favor.

O resto da tarde passou-a ele em visita a duas adegas de região que produziam aguardente para fora; a uma exploração agrícola que contava com duas vacas e três bois; bem como a receber uma representação dos donos dos estabelecimentos locais que exigiam a descida da taxa do IVA, não só para a restauração mas para o comércio em geral, pensando tanto nas pessoas que gostavam de tomar em casa o café, simples ou com leite, como naquelas que alegavam para não irem comer mais vezes fora, não terem roupa de jeito para vestir e, para não andarem sempre vestidas de igual, precisarem de renovar urgentemente todo o seu guarda-roupa.

Houve ainda tempo para o candidato socialista repousar antes do jantar e passar o limpo o discurso da noite, antes de ficar a saber, através de um pasquim local que saía de quinze em quinze dias, que a futura construção de uma barragem nas proximidades, mais do que com a ideia de trazer progresso à região, prendia-se com a decisão de, fazendo submergir uma aldeia, punir a população onde obtivera a mais retumbante derrota eleitoral.

A noite começou com a leitura de uma epístola de S. Paulo aos Coríntios, pelo pároco local que fazia questão de recordar aos presentes que, se Pedro Passos Coelho tivesse sido um dos apóstolos de Cristo, em menos tempo do que necessitou a atual direção do Benfica para esquecer Jesus, ele poria de parte todos os ensinamentos do Mestre e, em vez de praticar o bem, espalharia as más-novas preconizadas pela Troika.

Era longa a fila de pessoas que queriam cumprimentar o político. Ao cerimonial do beija-mão, embora com desconfiança, não faltavam pessoas ciosas de lhe agradar, como fariam porém a outro candidato que fizesse promessas semelhantes às dele, pois tanto num caso como noutro não tinham a certeza de que ele viesse a cumpri-las.

Quando António Costa foi chamado a discursar, na sala, incluindo os familiares dos apoiantes, estavam presentes mais de cem pessoas que jantavam à borla, porque para pagar a conta havia de ser chamado, pelo executivo camarário através de uma taxa qualquer que havia de ser criada, o contribuinte que era quem nada lucrava com a realização de eventos deste género.

Agora de fato, o secretário-geral do PS retirou do bolso um papelinho que estava dobrado em oito como se tivesse escrito um segredo pelos vistos mais bem guardado do que as reais intenções do que estavam por trás de tudo o que ele dizia.

Começara a lê-lo, quando qualquer coisa como o silvo de uma bala, foi audível no instante em que um projétil atravessou a sala e foi alojar-se junto à parede mais distante, numa estaca de madeira onde estava pendurado um balão que servia de decoração e dava à sala o tom de festa.

Numa trajetória plana, a bala passou a escassos centímetros da cabeça de António Costa, não se ficando a saber se fora a ela que a arma estivera apontada ou ao peito, pois tanto podia tratar-se de um mau atirador que falhasse o alvo a pouca distância como de um mais desajeitado que errasse a uma distância maior o sítio onde pretendia acertar.

Ao fundo da sala, começou a haver uma tremenda zaragata e com o barulho das cadeiras a voar não se percebia se na luta que estavam a travar três homens, quem levava a melhor eram os seguranças do candidato, que embora fossem corpulentos deviam ser ágeis, ou o previsível homicida na forma tentada que à mão talvez fosse mais eficiente a despachar os seus adversários.

Quanto ao candidato a primeiro-ministro, ainda não se refizera do susto que o apanhara desprevenido e já alguém lhe pusera as mãos na cabeça, obrigando-o a deitar-se no chão, talvez para não ser atingido no peito se o atirador de pontaria duvidosa resolvesse apontar-lhe ao baixo-ventre.

Veio a Polícia e, tendo-se apurado que não se tratava de um atentado terrorista, prenderam um sujeito lingrinhas, com ar de quem para conseguir amedrontar meter alguém só se tivesse o dobro da altura e empunhasse uma arma de maior calibre do que uma simples pistola de pressão-de-ar, daquelas com que na antiga feira popular as pessoas se entretinham a atirar ao boneco para ganhar o direito de levar para casa um igual mas sem estar todo furado por causa desses chumbinhos que eram inofensivos para um ser-humano.

Todavia, levaram-no algemado por posse indevida de arma de fogo e atentado à vida de um homem que mesmo que viesse a ser eleito Primeiro-ministro, só seria o primeiro político em que ele acreditaria se fosse verdade quando afiançam que o país saiu da crise e arranjasse um trabalhinho que lhe permitisse viver desafogado, saindo da situação desesperada em que há muito tempo se encontrava por falta de dinheiro para subsistir.