Um véu entre nós

Quero que te lembres dos meus olhos não sem a vida que perderam mas com o brilho que ganhavam ao olhar-te. Não quero que te recordes de mim assim, como um mundo tristemente vazio e cinzento. Continuo aqui, com uma mão pousada sobre o teu ombro, à espera que me olhes para poder dizer-te adeus. Não quero fazê-lo mas tu ainda tens algo para dar a esse mundo onde já não estou. No teu lugar sentiria o mesmo.

Sei que não tens vontade de inspirar o ar que te rodeia, sei que quando fechas os olhos vês um outro mundo, sem dor, sem mágoa, sem despedidas. E sei que tens um mar de lágrimas pronto a rebentar em ondas ao longo do teu rosto. Há um véu que nos separa, um véu que para ti é opaco e que para mim é transparente. Não sei como fazê-lo desaparecer, mas continuo com a minha mão pousada no teu ombro, à espera que me olhes para poder dizer-te adeus.

Tens a cabeça cheia de tudo e de nada. Tens a mente num rebuliço e não sabes o que fazer a seguir. Queres chorar e ao mesmo tempo não o fazes porque sabes que eu não gostaria que o fizesses. Podes chorar, estás no teu direito. Podes esmurrar as paredes, bater as portas e gritar. Estou aqui para te ouvir ainda que não me vejas. Mas sinto-me demasiado impotente. Tenho o rosto demasiado frio e as mãos geladas, mas continuo com uma delas pousada no teu ombro, à espera que sintas a minha presença para poder dizer-te adeus.

Vejo-te perscrutar a sala à minha procura. Sei que tens o coração acelerado e as pernas demasiado pesadas para que consigas levantar-te. Mas acabas por fazê-lo e vejo-te sair daqui demasiado apressado. Vou atrás de ti e os meus olhos prendem-se ao teu desespero, aos joelhos que cederam e que te atiraram ao chão, às mãos que levas ao rosto enquanto os soluços se escapam dentre os teus lábios. Quero chorar mas não consigo. O véu passou a ser um muro que nos separa e nos afasta progressivamente. Caminho até ti e pouso a minha mão no teu ombro uma vez mais. No entanto, estás demasiado perdido nesse grito sufocante para me notares. Continuo à espera que me olhes para dizer-te adeus.

Olhas para o céu mas eu estou à tua beira. Grito ao teu ouvido, digo-te que estou aqui e tu não me ouves. Não me procures nas nuvens nem no vento. Fiz-te uma promessa, jurei que estaria sempre ao teu lado e a verdade é que estou mesmo aqui. Sei que estás a pensar na ironia deste dia, na forma como o sol consegue nascer mesmo num dia tão escuro. Mas tens de aguentar, tens de levantar-te do chão e olhar em frente. É nessa direcção que está a tua vida. Todos os seres humanos nascem com um instinto de sobrevivência e sei que não tarda nada descobrirás o teu. Porém, ainda me falta dizer-te adeus.

Ponho a mão no teu peito e sinto o teu coração anatomicamente perfeito. Mas depois descubro imensos pedaços diferentes de um puzzle que só eu sabia fazer. Um dia haverá outra pessoa capaz de fazê-lo, tenho a certeza disso. Não te sintas preso a mim, não te sintas acorrentado a esta despedida prematura. Não apelides a vida de injusta e inútil. Pensa que pelo menos tivemos a possibilidade de nos esbarrarmos e darmos um pouco mais de cor ao mundo. Talvez o sol se tenha erguido hoje devido a todas as noites que passámos a contar as horas à espera dele.

Ouço-te inspirar profundamente e de repente perco-te de vista. Não te disse adeus, não te vi olhar para mim uma última vez. Passado algum tempo (que perdi a habilidade de contar), vejo-te novamente. Chamo por ti e começas a caminhar na minha direcção. Tens as mãos enrugadas e o cabelo ralo mas trazes o teu melhor sorriso. À medida que te aproximas noto as tuas mãos cada vez menos engelhadas e o teu cabelo cada vez mais escuro e comprido. Quando chegas à minha beira estás exactamente como da última vez em que te vi. E então percebo que se passaram anos, décadas, uma vida inteira que não pude ver. No fim voltaste para mim mesmo que eu nunca te tenha deixado realmente. Ponho a mão no teu peito e sinto o teu coração recomposto, com vários remendos cuidadosamente tecidos. Olho-te nos olhos e não há nenhum véu, nenhum muro que me impeça de beijar-te. E apesar de tudo, nunca me senti tão viva como agora.

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso