Uma viagem de comboio

Há alguns dias atrás voltei a fazer algo que há muito tempo não fazia: andar de comboio. Deve ser do consentimento geral a ideia de que, quando tiramos a carta e temos um carro ao nosso dispor, andar de transportes públicos passa a ser uma solução de último recurso. Já tirei a carta há três anos e depois disso só devo ter andado de comboio mais umas cinco vezes. Sim, número ímpar. Lembro-me nitidamente de estar tão cansada na noite do S. João em 2011, que não tive outra alternativa senão ligar ao meu pai e pedir-lhe em tom ensonado que me fosse buscar “por amor de todos os santos e mais algum”.

Com este interregno, tinha-me esquecido das situações que acontecem dentro de um comboio. Da barulheira infernal que se ouve mesmo quando o comboio vai vazio, da minha incessante vontade de gritar “calem-se”, da minha falta de paciência para esperar que o comboio pare “em todas as estações e apeadeiros excepto Leandro” (o pessoal da linha de Braga e de Guimarães sabe do que estou a falar).

Para começar, odeio a estação de comboios da minha cidade. Fica tão isolada que já só lhe falta uma placa a dizer: “sítio propício a assaltos e violações, venha visitar-nos!”Assim sendo, das duas uma: ou alguém me vai levar à estação com a obrigação de me ir buscar, ou levo o carro até lá. E vocês perguntam: “mas não há casas à volta, civilização?” Há. E também há um rio óptimo onde se podem despejar cadáveres sem que ninguém dê por nada.

Depois de entrar no comboio e arranjar um lugar, começo ouvir os burburinhos. Conversas que não interessam a ninguém e que poderiam ser tidas com uns decibéis a menos. Mas não. Temos a obrigação de assistir a um talk-show da tarde em directo com os mesmos problemas que são retratados na televisão: o namorado deixou-a, ele tem demasiado acne na cara, a cunhada traíu o irmão com o melhor amigo dele. E não há possibilidade de mudarem de canal.

Da minha cidade à primeira estação, parece desenrolar-se uma vida inteira. Deus não quis que aquelas duas cidades estivessem ligadas e então inventou forma daqueles poucos quilómetros parecerem uma viagem a Lisboa no Intercidades. E quando finalmente chegamos lá, adivinhem: ninguém entra e ninguém sai.

A próxima paragem que me chama a atenção fica na Maia. Chama-se “Travagem”. É irónico o comboio ter de parar numa estação com este nome. Mas é útil, não vá o maquinista esquecer-se que tem de parar e uma simples olhadela para a placa da estação resolve logo o imbróglio. De resto não há mais estações engraçadas. Só a de Contumil que, para quem não sabe, é quase como que a estação oficial do Parque Nascente. Saem do comboio de mãos a abanar e voltam cheios de sacos da Primark.

A viagem acaba em Campanhã ou em São Bento. São sempre as estações onde sai a maior parte do pessoal que me acompanha no comboio. Há quem saia em Campanhã só para apanhar o metro para Trindade. Custa subir os Aliados, caramba. Falo por experiência própria, já fiz ambos os caminhos e ir de metro é bem mais cómodo. Mas a maior parte das vezes que parei em Campanhã foi para ir comer um Kebab. Vida de badocha, lá está.

Finalmente o comboio chega a São Bento que é, literalmente, uma luz ao fundo do túnel. E quer seja a primeira vez que se veja a estação, quer seja a milésima, é impossível não se ficar sempre embasbacado a olhar à volta, como se tívessemos voltado atrás no tempo.

Saímos à rua e respira-se Porto. Do lado esquerdo ergue-se a Sé, à direita estendem-se os Aliados e quase no centro, avistamos a altiva Torre dos Clérigos que olha majestosamente a cidade tripeira. Mas o Porto tem muitos cheiros. Ora cheira a castanhas assadas, ora a sardinhas na brasa. Mas também cheira a urina nas casas de banho da estação, nas noites cheias de São João (fiz uma rima em homenagem a essa noite).

Já andei de comboio até diferentes paragens. Já fui ao Oriente, a Braga, a Santa Apolónia e a Guimarães (não fiz nenhuma homenagem à música dos Da Vinci, juro). Mas nada tem mais beleza do que ver nascer o Porto à saída de São Bento.

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso