Vale da Ratinha – Capítulo 2

O dia termina. Um belíssimo espetáculo de chuva. As janelas tremem de frio. A lareira aquece o coração de Leonor. O fogo desperto. E a loiça fria. A casa que pede mantas quentinhas. Mais de uma tonelada de vida. Que encerra as pequenas e vulneráveis paredes existentes.

O concerto entra em fase de declínio. Gotas insignificantes e espaçadas de água. Apenas um raspar de porta. Um alisamento que não tira bocado. Ouve-se um choro miudinho. Leonor apressa-se. Corre em direção ao exterior. De robe e pantufas com cara de elefante. A vista para a rua e a imagem vagarosa de um pequeno cão. O cenário perfeito para os famosos olhos alheios.

A noite avança no tempo. Quase uma da manhã. Meia dúzia de vizinhos observam o vulto estranho de Leonor a desaparecer no vento. O ameno silêncio regressa à Vila da Ratinha. Por fim.

“Tens cara de Mosca”

O amigo de Leonor que é um cachorro. Um humano de quatro patas. De uma raça qualquer. Com orelhas minúsculas. E umas patinhas extremamente cabeludas.

Os animais não devem ser comparados a seres inferiores. Sentem compaixão e amor. Os cães, principalmente. Conhecidos por compactuarem com relações fortes ou elos do paraíso.  Com Leonor como cúmplice.

“Olha que lindos dentes tu tens!”

A toalha é inevitável. Obrigatória. Apesar do tempo falso. O cachorro seco. Quase seco. E a busca pelo dono perdido. Ou dona. Ou os dois. O sucedido é o menos importante. Existe um lar. E restos do jantar. Existe um cobertor esburacado. As coisas resolvem-se ao amanhecer. E não tarda. São quase quatro da manhã. Uma boa hora para observar a pilinha do Mosca. A curiosidade faz parte da natureza humana.

As folhas pingam. O verde parece mar. O céu acorda límpido. As vozes ecoam pela calçada cansada. São as falas do dia. Do fresco do início. E o burburinho da noite anterior.

“Aquilo foi homem que entrou ali”

Mais e mais. Como se de um país se tratasse. É apenas uma vida.

“Com o marido fora é o que se vê. Que vergonha!”

E o chorrilho continua.

“Já a mãe dela era assim. Que deus a tenha”

E as vacas seguem. Com altos e baixos. Devoram o pasto. Na condução dos homens bons. Observam o nada. Em volta o horizonte imenso. Os homens. E uma jovem. Ao longe. Uma jovem de passo acelerado. Que voa pelo homem do campo. Um Manel qualquer.

“Olha quem vem lá! Isto não é moça daqui”

Lado a lado. Olhar com olhar. Apenas o vento. E o silêncio seguido de uma vénia com a boina gasta. Quase um ajoelhar de palavras. Nada. Apenas um leve coçar de testa.

A hora é a do almoço. A Ratinha permanece húmida. Leonor aquece o comer. Sopa da semana. O característico. A preferida do Diamantino. E do que chega. Um engraçado sorriso à janela da cozinha. Leonor apressa-se a tapar a panela, pousa o pano na ponta da mesa e rapidamente coloca mais um prato na mesa.

O mundo estremece. A mãe de todas as fofocas. Uma mulher, nunca antes vista, ultrapassa a realidade da rua e penetra de fininho os aposentos de viúva aparente. É o fim. Mas há coisas que pouco importam. Só o agora é relevante. O depois fica para depois.

As duas à mesa. Como se de duas estranhas se tratassem.

“Quem és tu?”

O Mosca surge de rompante. Com o rabo a tremer e um osso na boca. A interromper o constrangimento.

“Eu sou a dona desta linda bolinha!”

Cai o Carmo e a Trindade. Leonor suspende a comida na garganta. Arregala os olhos. A cabeça dá lugar a imensos sentimentos de perda. Logo agora. O ser humano adapta-se facilmente ao desconhecido.

“Como é que eu sei que és a dona do Mosca?”

“Não tens como saber. Ou acreditas em mim, ou acreditas em mim”

Leonor torce os lábios. Mil e uma caras.

“Queres mais sopa?”

“Olha bem para as minhas roupas! Olha bem para mim! Achas que pertenço a este desterro? Cura-te”

Cabelos lisos. Meio escuros. Expressão forte. Boca grossa. Roupas caras. Orelhas pequenas e uma tatuagem no pescoço. Uma cruz qualquer.

O silêncio é absoluto. A certeza de que o pobre Mosca conhece, definitivamente, a miúda mistério.

“Queres mais sopa ou não? Responde!”

“Não. Quero que te despaches com a sobremesa. Ainda demoro a chegar ao acampamento”

“Como é que descobriste o paradeiro do Mosca?”

“Segui-lhe o cheiro. Desde o cair do sol”

“Mas…”

“Querida, este cão está identificado. Se quiseres posso informar-te melhor”

O microchip é um pequenino objeto eletrónico que é colocado no cão através de uma injeção subcutânea, na região do cachaço. O chip incorpora um número único. Uma espécie de bilhete de identidade de uma pessoa. Nome e morada.

Leonor mantém-se inalterável. Uma chuva miudinha começa a tombar. Outra vez. Calmamente. Como se tivesse todo o tempo do mundo.

“Não estou a perceber!”

“Tenho de ir”

A casa que chove. Um dilúvio. Quer nos olhos dos protagonistas, quer lá fora. Como se algo impedisse o momento oportuno. Uma força superior. Talvez. O Mosca permanece quieto. Vislumbra a dona estonteante. Exerce a vontade de lamber. O osso devorado.

“Não vás! O mundo está a cair”

A misteriosa bela extrai o telemóvel do bolso e faz uma chamada. Ou tenta fazer uma chamada. Debaixo do olhar atento de Leonor.

“Merda, não há rede!”

“Aqui a rede só chega ao final da tarde”

“Boa merda”

“Vou buscar a sobremesa”

As relações humanas são esquisitas. A solidão não é correta. Não cumpre todos os procedimentos. Mesmo que tudo não passe de uma ilusão. Mesmo que tudo não tenha passado de uma miragem. Da loucura de estar só.

As dezoito horas prometem.