Vendo apartamento em bom estado com 2 quartos, salão e sala de chat – 2ª parte

Com uma hora e cinquenta e três minutos de atraso, quando faltavam sete para o meio-dia, ele viu-a chegar apressada, vinda do lado contrário da rua onde não se via vivalma por causa do sol.

Fazia um calor sufocante e a rapariga arfava enquanto caminhava com a claridade a dar-lhe de frente no rosto, como se fosse ao encontro da fonte da origem do calor e não dele que, ao fim de tão longa espera, devia estar uma sombra do moço de aspeto calmo que era quando chegou ao local combinado para se encontrarem: a saída sul da estação ferroviária de Coimbra onde paravam as composições que vinham de Lisboa em direção ao norte.

Por causa da ansiedade, de tanto remexer no cabelo, já o tinha a todo despenteado e devido a não ter pregado olho a noite inteira, matutando no primeiro encontro com a namorada virtual que ia enfim conhecer, as pálpebras pesavam-lhe agora mais do que um cabrito que dali até casa tivesse que carregar às costas. Pensou que qualquer um no seu lugar, começaria a dar sinais de cansaço, após estar há tanto tempo de pé e ter viajado quatro horas trancado numa carruagem de terceira classe com todo o desconforto e sem ar condicionado que o fizesse desejar permanecer ali à espera que o calor abrandasse, mas a ele nada desanimava, sobretudo pela certeza de ir ao encontro da sua amada que o fazia sentir-se feliz e de súbito revigorado, como se a cabeça interpretasse ao contrário os sinais do corpo exausto.

Assim que o viu, a jovem reconheceu-o de imediato. Buscou na memória, o rapaz que lhe acenava e sorria na fotografia, que recebera via sms na caixa postal do telemóvel e logo guardou no cartão de memória como se fosse um toque inédito, para comparar com o que tinha diante de si e concluiu que se tratava do mesmo. Tinha o mesmo ar bem-disposto, a mesma franja, o cabelo escadeado de lado, as sobrancelhas arqueadas e um sorriso tão grande a cobrir-lhe o restante rosto, que dali não deixava ver mais nada.

Por troca de mensagens, haviam combinado antecipadamente os pormenores do encontro, isto após meses de se terem conhecido numa sala de Chat na Internet e nunca terem deixado de falar, mas apenas por essa via ou por telemóvel.

Nos preparativos, cuidaram dos mais ínfimos pormenores para que nada falhasse, esforçando-se ao máximo para não darem, um ao outro, a impressão de serem, nem uns jovens imaturos nem uns desorganizados experientes. Por essa razão, é que, à hora prevista por ele para chegar, a qual dependia da hora a que saísse a composição e do número de paragens que efetuasse o comboio a partir da Estação de Santa Apolónia, contrapôs ela com a escolha local para se encontrarem, que desde logo ficou combinado ser a Estação Ferroviária da cidade de Coimbra, à passagem da qual os comboios que rumavam ao Porto e a Braga, abrandavam para largar os rapazes apaixonados que viajavam da capital. Marcaram a hora do regresso, que seria antes de anoitecer, porque embora fosse domingo, ele precisava de estar em casa a tempo de dormir antes ir para as aulas no dia seguinte. Também o pormenor da roupa com que se apresentariam não foi descurado, apesar de, um e outro, andarem tão confiantes ultimamente que tinham praticamente a certeza de não se poderem confundir com ninguém, nem que se vissem misturados no meio de uma multidão.

Após uma ligeira hesitação, cumprimentaram-se efusivamente, com um beijo na boca e depois outro e toca de dar mais um abraço que o tempo estava a passar e não voltava atrás. Para o casal apaixonado, nem parecia que era um dia semanal de descanso porque, mesmo ao lado, passava imensa gente apressada em direção à banca dos jornais que estava aberta, para comprarem os desportivos e lerem a crónica do jogo que opusera na véspera a Académica ao Benfica. Nos braços um do outro, a vida era um mar de rosas e nem o resultado da partida entre os dois clubes de ambos poderia causar-lhes mossa no entusiasmo, ainda que o mesmo implicasse, para um, no final do campeonato, a descida à segunda Divisão sem o regresso previsto a curto-prazo e, para o outro, uma vez mais a perda do título para o arquirrival Futebol Clube do Porto.

Arrefeceram os ânimos entre eles, quando ela o tirou dali por um braço para que, no dia seguinte, não fosse do agarranço, nem de estarem naqueles propósitos no meio da rua que as pessoas quisessem ler no jornal, uma reportagem certamente mais corrosiva do que a feita à exibição da Briosa na partida frente ao conjunto de Lisboa.

Abandonaram à pressa o local num táxi, que os levou rapidamente às imediações da Universidade, em menos tempo do que a rapariga demorou a ensinar ao experiente condutor um trajeto mais curto que só ela conhecia. Para surpresa do homem, que olhara para ela com desconfiança, a viagem foi breve. Passaram por uma rua pouco movimentada de peões, o que era atípico numa cidade de estudantes, onde, no lado nascente, o fim dos prédios de habitação significava a fachada de um hotel arruinado que estava em obras. Circundaram uma rotunda oval e meteram por uma alameda cheia de árvores dispersas como se tivessem sido plantadas pela mão de uma criança e onde, na parte da manhã dos primeiros domingos de cada mês, se realizava uma feira do livro usado em que as pessoas aproveitavam para vender os volumes que sobravam da falta de tempo que tinham para lê-los. Percorreram uma outra rua e finalmente, chegaram ao sopé de uma escadaria, situada na base do terreiro da Universidade em cujo esplendor se via a torre, mais conhecida pela Cabra, que os turistas admiravam ao fundo, na baixa da cidade como faziam ao Pártenon, localizado na acrópole de Atenas, aqueles que se deslocavam à antiquíssima cidade-estado que remontava ao tempo da Antiguidade Clássica.

Apearam do táxi e calcorrearam uma zona repleta de esplanadas. Numa delas, havia um grupo de turistas de rosto afogueado, que seria por causa do sol e não tanto de terem chegado ali a correr, imitando o lesto empregado do bar que, para conseguir atender todos no menor espaço de tempo possível, tinha que desalmadamente percorrê-la, incessantemente de uma ponta à outra.

Puseram-se então a andar em direção à baixa da cidade. Porém, ao passar pelas ruelas da parte antiga, tiveram depois que romper pelo meio de um grupo compacto de turistas alemães que registavam tudo à sua volta com as suas moderníssimas máquinas fotográficas e smartphones de última geração, falando num idioma que nenhum dos dois percebia qualquer coisa que só faria sentido se fosse para se aconselharem uns aos outros a enfiar um chapéu ou a sair rapidamente da chapa do sol. Para trás de ambos, tinham ficado os edifícios das Faculdades de Letras e de Direito, localizados no Polo I, a chamada “Alta universitária” da cidade, que foram mandados construir por um ministro consciente da importância do Ensino, num tempo em que ao Estado ainda sobrava dinheiro para pôr de pé infraestruturas que, mesmo a quem vinha de fora, pela sua imponência causavam estupefação.

Quase a correr, por pouco, não esbarraram num transeunte parado à sua frente, distraído que estava com o som emanado por uma coluna em cima de um banco à altura da cintura, que soltava gemidos de várias guitarras. Estorvava quem passava, posta no limiar de um beco onde se via a tabuleta de um antigo restaurante, que confinava com uma moderníssima loja de penhores. Nessa altura, estugaram o passo e de uma forma lesta, como se o rapaz trepasse a uma varanda disposto a arrancar uma rosa para dar à sua amada, fiéis ao cheirinho das pataniscas que alguém fritava à vista dos clientes, estancaram à entrada de uma tasca com um enormíssimo letreiro a anunciá-las por bom preço, ainda por cima acompanhadas de pão fresco, de uma bebida de cápsula, abundante salada de alface e arroz de feijão.

Comeram até se fartarem e conversaram em demasia, tanto que só quando o dono do estabelecimento, um sujeito de bigodinho aparado a contrastar com o rosto rude, os abordou com a conta é que deram pelas horas. Foi quando se aperceberam de que o dia tinha demorado menos tempo a passar do que as horas passadas a preparar um encontro que prometeram terminar em Lisboa, com direito a prolongamento e após uma segunda parte que se queria jogada mais intensamente, a proporcionar maior contacto físico entre ambos.

Deixaram para trás o restaurante e, desta vez a pé, encaminharam-se para a estação da CP, que ficava mais perto indo pelo caminho paralelo ao curso do rio Mondego, cujo percurso ele bastaria seguir se pretendesse ir para a Figueira da Foz ao invés de Lisboa.

Foram de mãos dadas. Na cidade dos estudantes, ao entardecer, toldava-se a atmosfera com uma tonalidade de branco no céu que lhe dava o aspeto de um dia acabado de nascer. Era quando bandos de namorados, como aves de regresso a casa, iam namorar para os jardins, sentados nos bancos ou de toalhas estendidas no relvado de cujos lugares, quando se levantavam, nada mais ficava igual porque nascia uma flor.

Só o nosso casal enamorado é que não viu. Imperturbáveis, como se caminhassem de olhos vendados ou postos no céu, contemplando o fogo-de-artifício que mais ninguém via mas se acendiam à sua passagem.

Continua …