Viagem de um Homem bom

Mil novecentos e oitenta e três. Um homem bom. E o mar. Todo. O homem bom caminhou-lhe cada palmo. De mar. Que é mais que a terra.

É o meu tio Zé. Um homem bonito. De olhos azuis. Como o mar. A estrada que escolheu. Lá, nos olhos azuis, corre-lhe a vida. Há ondas más, agora. Das grandes. Que morrem em cima dele. Há tsunamis. Que o sacodem para o porto mais feio. Onde não está ninguém. Onde é sempre noite. E frio.

Mas nos olhos do meu tio também há gaivotas a cantar. Na praia. Ao pé do mar. De manhã cedo. E ao fim da tarde. A hora da paz.

São assim os olhos de um homem bom. Mostram tudo. A história toda. Como ela é. Nunca como ela não é. São azuis os olhos do meu tio.

Está doente. E magrinho. Tem cinquenta e dois anos. É a vida a mentir. Com todos os dentes que tem. E tem todos.

O meu tio deu a volta ao mundo. No Navio-Escola Sagres. Embarcou em mil novecentos e oitenta e três. Com pouco mais de vinte. Durante um ano. Que valeu por mil vidas. Das que valem a pena.

Diz que viveu tudo ali. Ganhou gente. Perdeu fantasmas. Ganhou cores. Perdeu medos.  Era a vida a entrar por ele dentro. Era a vida a não mentir. Era ele, de braços abertos, no ponto mais alto do barco. Era o vento a pôr-lhe a mão no cabelo. E a fazer de mãe. A que nunca teve.

Havia um Estádio das Antas no barco. Ou da Luz. Era no convés. Às vezes na proa. Lá, mudava aos dois e acabava aos quatro. Um chuto mal dado e a bola ia fazer de ilha para um pedaço de mar qualquer.

Conheceu tudo. Pessoas brancas. Pessoas pretas. De olhos em bico. De olhos com o mundo todo lá dentro. Trouxe, nos olhos, S. Francisco. E Osaka. E Tóquio. E Acapulco. E Xangai. E o resto do planeta. E deixou, nesses sítios, a aldeia que ele é. Verde. Com um rio a correr devagarinho. Simples. Que é a forma maior de se ser.

Descobriu sítios. Com cheiros diferentes. Com caras diferentes. Com deuses diferentes. Sítios muito diferentes. Mas muito iguais. Sítios sem tirar nem pôr do sítio dele. O amor não nasceu aqui. Nem lá. Não tem nacionalidade. Não tem Deus. É de todos. É onde todos querem morar. Para onde todos apontam os faróis. É uma Revolução que nunca ninguém viu. E que torna os Homens iguais. E assim é que está bem.

O meu tio está doente. E magrinho. Tem cinquenta e dois anos. É a vida a mentir. Com todos os dentes que tem. E tem todos.

Gosto muito dele. É irmão da minha mãe. O mais pequenino.

Veio-se embora do mar. Mas o mar não se foi embora dele. Nunca. E houve quem corresse por ele. E houve quem deixasse pegadas desde o outro lado do mundo até este. Só para o ver. Era japonesa. E veio do Japão. Que é quase noutro mundo. Pousou no Porto. Parou no Bolhão. Apanhou um trólei até Gondomar. E bateu à porta. Para se alumiar nos olhos azuis do meu tio. Para flutuar no rio que corre na aldeia que ele é. Era o mar a bater-lhe à porta.

Abençoado aquele que tem História. Abençoado aquele que expulsou Vândalos e Visigodos do seu território.  Abençoado aquele que ergueu o país que quis ser. Como o meu tio. Dos olhos azuis. E do coração maior que a montanha maior que há. É lá que moram os dele. São três. E são a melhor viagem que ele fez.

De um de Junho de mil novecentos e oitenta e três a vinte e dois de Março de mil novecentos e oitenta e quatro, o meu tio visitou dezanove portos. Foram duzentos e noventa e seis dias. Quatro mil quatrocentas e cinquenta e três horas. Vinte cinco mil seiscentas e cinquenta milhas. Foram mil anos. Nasceu todas as vezes que tinha morrido. Conheceu o Teles. O Junot. O Toni. O Cruz. E os outros todos. Imortais uns nos outros. O Sol do Japão não se esquece. Malaca também não. Xangai é para sempre. Como a vida dos homens bons.

O meu tio Zé é capitão. Da vida que vive. Agarra-se ao leme com a força de mil homens. Há muitas ondas. Feias. Mas ele, de farda branca, com as costas direitas, há-de chegar ao porto. Os homens bons chegam sempre. Mesmo quando não chegam.

É o meu tio Zé. Um homem bonito. De olhos azuis. Como o mar. Onde cantam as gaivotas à hora da paz.

Bons ventos, Tio. Bons ventos.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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