Vila de Reis e Rainhas

Cometemos por vezes um erro de antipatia em relação a certos lugares do nosso país, ao atribuir-lhes importância consoante a posição que ocupam no mapa.

Começa-se por valorizar mais os que estão próximo do litoral, como se o país fosse uma faixa de terreno tão estreita que fora dela todas as cidades e a as vilas que se avistassem já pertencessem a Espanha.

Se acrescermos ao ganho de relevância, das vilas e cidades que orbitam em redor das grandes metrópoles como se tivessem mais possibilidades de crescer sob a sua influência, a sua proximidade com o mar, temos reunidas as condições necessárias para não faltarem aos seus habitantes motivos de sobra que os levem a comparar-se no estilo de vida que levam aos residente de Lisboa ou do Porto, também elas cidades banhadas por grandes rios que, da nascente à foz, percorrem centenas de quilómetros até desaguarem no mar.

Parece à primeira vista que, neste país tão desigual não só nas oportunidades que são dadas às pessoas, os lugares que pela distância estão afastados dos grandes centros de decisão, estão cobertos por um manto oculto que os torna invisíveis aos olhos dos políticos, e embora alguns mostrem relutância em aceitar esse facto, é consensual entre quem lá vive que quase sempre são insuficientes os recursos financeiros postos à disposição dos órgãos de poder local ou os destinados pelo poder central a investimentos de maior monta, visando desenvolver o interior de um país cada vez mais pobre e distante da média de crescimento nacional.

A não se inverter rapidamente esta tendência, não só continuaremos a ver essas regiões perderem população, como a ganhar, por cada pessoa que permanecer na terra que a viu nascer e onde não consegue criar raízes, mais uma descontente apenas à espera de uma boa oportunidade para se pôr a andar dali para fora.

Porém, a meu ver, poucos lugares haverá em Portugal continental que, tanto como à posição que ocupam no respetivo mapa, poderão afirmar que devem em grande parte a sua importância como um que visitei no passado fim-de-semana, de seu nome: Vila de Rei.

Terra de reis e rainhas, Vila de Rei devia ocupar um lugar central nas nossas vidas. Considerado o centro geodésico deste país, trata-se de uma pitoresca vila do distrito de Castelo Branco chamada que bem podia ter sido, até à instauração da república, a residência oficial da monarquia tal é a nobreza de porte das suas gentes.

E quem a visita, jamais esquece que no alto da serra da Melriça, a quase seiscentos metros de altitude, assinalado no mapa por um ponto negro mas no terreno por um marco, está o lugar exato que assinala o sítio a partir do qual estando os Vilarregenses à mesma distância de Espanha e do mar, por mais nos esforcemos nada conseguimos ver para lá das paredes formadas pelos maciços das serras da Lousã e da Estrela, esta o ponto máximo até onde a vista alcança.

Lugar dado a festividades, Vila de Rei celebra com uma feira medieval, um antigo foral do tempo em que um rei, ao qual foi dado o cognome de lavrador, sempre tão desejoso dessas iguarias, fez questão de torna-la sua para constar que lhe pertenciam todos os queijos e enchidos que a partir daquele momento fossem ali produzidos.

A vila, ela própria uma joia no coração de Portugal, é hoje o maior tesouro de uma vasta região que tem vindo a ser, nas últimas décadas, saqueada pelos fogos. Os maiores impregnaram de medo os habitantes das aldeias que continuam receosos de vir a perder o rendimento que extraem da floresta, ainda a contas que andam com a perda do património de arte sacra decorrente dos furtos verificados durante as invasões francesas no seculo XIX.

A par da Biblioteca José Cardoso Pires, vale a pena visitar o Museu do Fogo e da Resina, recentemente inaugurado para homenagear as populações locais, antes de passar por um dos típicos restaurantes a caminho do largo da Misericórdia, onde está a Igreja com o mesmo nome, e almoçar a famosa sopa de peixe ou os maranhos, que não impedem de provar as migas, o bucho recheado ou o bacalhau à Vila de Rei, nem retiram apetite para as famosíssimas tigeladas ou para as broas de mel que podem saborear-se à sobremesa.

Instalado numa das casas mais antigas da vila, do acervo do Museu Municipal de Vila de Rei, faz parte uma preciosa coleção de objetos que permite empreender uma viagem no tempo sem, contudo, esclarecer se é ou não anterior à vinda de romanos e celtas, a fixação dos primeiros povos na região montanhosa das dioceses de Castelo Branco e Portalegre. Para muitos, os vestígios pré-históricos encontrados são a prova de que a presença humana é anterior a essa época.

Por fim, resta dizer que só iguala o prazer de percorrer a pé as ruelas do centro histórico à noite, enfeitadas de camélias que emolduram as entradas das casas como altares, o esplendor do luar nas fachadas refletindo-as das cores que quiséssemos ver.

Mas não vim de lá sem ter seguido o trilho das cascatas, no fim do qual, reconfortados pela beleza natural desfrutada, nos sentimos ainda com energia para descer o Zêzere de canoa, rumo à albufeira da barragem de Castelo de Bode.

Esta imensa lagoa torna-se o ponto de chegada dessa frágeis embarcações que trazem ao leme um homem tentando coordenar o esforço de quatro tripulantes que se recompõem de cada vez que um remoinho os tenta derrubar. E é vê-los a custo, contorcendo os corpos como se fossem marionetas caídas num mar de águas agitadas tentando vir à superfície.

Vim, no entanto, com a sensação de não ter visto tudo, e não falo só das localidades onde não parei no regresso com a pressa de chegar a casa, feliz, que é como nos sentimos quando acabamos de fazer uma viagem que deixa saudades.

Carreguei o saco de viagem escada acima, bati a porta e aterrei no sofá com a clara sensação de ter superado uma prova. Afinal de contas, superado o preconceito tinha agora vontade de voltar a preparar as coisas e rumar a Bragança, subindo pelo lado de Viseu, Lamego, e Chaves, para descer de seguida até ao Algarve, atravessando o Alentejo pela zona da planície onde mora ainda gente mas não se vê por causa do calor.

abiliobernardo_logoCrónica de Abílio Bernardo
Crónicas Vadias
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