Visões de um gato – Viriato Queiroga

Levanto-me, preguiçosa e solenemente, apreciando a sensação de alívio proporcionada pelas endorfinas desse mui nobre acto que é espreguiçar. Arregaço as garras, preparando-as para gentilmente provocar um pequeno corte no meu escravo pessoal, dado que ele ainda não havia preparado o delicioso manjar que a um gatídeo saudável é devido. Como se atreve ele a não me conceder essa necessária atenção? Caminho, pelo longo corredor do meu trono, até ao local de visualizações de imagens, que estes humanos teimam em apelidar de Sala de Estar (convenhamos, trata-se do meu território de recriação).

Bem, o meu humano, ao invés do comum queixume sobre a sua incapacidade em comunicar com fêmeas da sua espécie menor, encontrava-se entretido mirando a caixa de lavagem cerebral da sociedade humana. Faço-me presente por um suave miar, ao qual ele não presta atenção. Estranho, penso eu. Apesar de trapalhão, ele havia sido até ali um excelente servente… Alguma coisa cheira mal, e não me refiro às boas intenções do meu arqui inimigo (essa desgraçada bola de pelo sem um pingo de sarcasmo nas veias…).

Decido, então, utilizar o meu peso massivo ao atirar-me para o colo do meu referido escravo. Ah! Festas! Parece-me uma melhoria… Porém, algo continua a soar definitivamente errado. Na caixa manipulativa encontra-se uma conhecida figura, creio ser um dos patéticos líderes da espécie humana. O Escravo encontrava-se focado nos incompreensíveis miados que pela mandíbula desse recalcitrante, saiam. É então que reparo numa idiossincrasia raramente observada neste meu favorito espécimen: água decorre por entre os raros pelos do focinho dele. Algo que reconheço como sendo uma manifestação de tristeza por parte da espécie humana.

Mas como pode este idiota descerebrado estar tão insatisfeito e transtornado? Tudo está como devia: ele alimenta-me, dá-me festas, prepara-me a cama, alimenta-me, leva-me ao veterinário, alimenta-me, mima-me com objectos de extrema necessidade, como ratos de borracha, alimenta-me… E em troca eu pavoneio o meu belo pêlo, vigiando a casa em busca de ratos e afugentando essas suspirantes de atenção que são as fêmeas da espécie dele… Se existe perfeição… Essa é definição do nosso ninho! Decido, então, aproximar-me… Mais e mais… E o servo pega-me, gentil e docemente, colocando-me, posteriormente no meu berço.

A tal de televisão continuava a tocar em todo este processo, mais e mais indivíduos conhecidos roubavam a atenção às minhas fantásticas piadas sarcásticas, gráficos apontando para baixo passavam naquela espécie de espelho, ajuntamentos de diversos humanos (será que esta espécie não sabe valorizar o seu próprio espaço?), e o aspeto só muda. Será o mundo assim tão grande que justifique algo para além do sadismo e piada advindo do convívio entre este pequeno nicho?

Não… Algo ultrapassa aquilo que me parece ser os pilares fundamentais deste paraíso que é a vida de gato que me rodeia. O meu fiel servo abandona regularmente o seu pequeno banco almofadado. O que há para lá daquela porta? Para lá daquele quintal?

Tantas questões… Dedico-me ao pensamento intrínseco sobre elas… E ainda assim, de nada adianta… Meh… Cá estou eu, belo gatídeo a meter-me em questões societárias humanas. Volto para a cama, não sem antes roubar a peça italiana e deliciosa que constituía a refeição do meu servo, enquanto este me coça as orelhas.

A vida continua o seu processo… E ainda assim… Inerentemente, as questões continuam… Persistem. Insistem.

Não compreendo…

Bolas… Odeio Segundas-feiras!

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