O Zé da Horta era o Tom Sawyer da minha rua

Na minha rua, há quarenta anos o Tom Sawyer era o Zé da Horta. Hoje, conta mais de cinquenta, grande parte dos quais entregue a centros de detenção de onde saiu revoltado por, na vida real, as aventuras em que entrou nem sempre terem terminado como as imaginava o escritor da sua personagem da infância.

Esquelético e a aproximar-se de andar desengonçado, assim o viam com temor, as mães das crianças que viam na influência que ele podia exercer sobre elas, um manual de boas maneiras sobre a melhor forma de seguir um mau exemplo.

Tinha uns doze anos, o cabelo semi-encaracolado como um pequeno deus que semi-realizava os pedidos da mãe quando ela o proibia de ir para a rua, as pernas longilíneas e o único inconveniente de ser muito alto é que tendia a andar encurvado para a frente, desafiando com a cabeça a lei da gravidade, que de cair e esborrachar-se no chão, só parecia pendente de poder partir-se um frágil fio que a prendia ao pescoço ou de vir alguém mal-intencionado por trás e empurrá-lo pelas costas.

A jogar futebol no meio da rua, Zé da Horta não media esforços e corria desunhado atrás do esférico como se estivesse na frente de um olheiro a espreitá-lo de trás de um carro, e fosse aquela a derradeira tentativa de passar num teste a sério para ingressar num grande clube. De olhos postos na baliza que, de onde chutasse, se tinha a impressão de encolher no tamanho para a bola não entrar, só faltava, para ganhar a distinção de ser considerado o melhor jogador em campo, que conseguisse enfiá-la para lá da linha de golo, tantas vezes quantas as que, na ânsia de acertar no alvo, atirava com força mas por cima da barra ou a rasar os postes de cada um dos lados.

E sendo versátil, tão facilmente Zé da Horta podia deambular nas páginas interiores ou saltar do título de capa de um livro de Mark Twain, como dali ir para um capítulo de os “Capitães de Areia” de Jorge Amado. Em qualquer situação, sentia-se confortável como peixe na água, que do modo como amava a liberdade, não convinha ser a de um aquário, que por mais bonito que fosse lhe prendia os movimentos.

Mas maior do que a fama de rufia de que desfrutava, era o engenho que demonstrava na construção de barracas de madeira que serviam de quartel-general e ponto de partida para as aventuras em que era sempre ele que mandava, dentro das quais guardava ferramentas de trabalho com que, se o deixassem dar largas à imaginação, construiria um arranha-céus mais alto do que Empire State em Nova Iorque. Era um montículo de pedras de formato e tamanho diversos, uma mão-cheia de pregos e parafusos ferrugentos, plásticos velhos e jornais esfarrapados a fazerem a vez das telhas com que pretendia impedir a chuva de infiltrar-se pelas frestas do telhado, e por fim um martelo para pregá-los, de forma a nem um tufão poder arrancá-los do seu lugar, para uma vez com os amigos lá dentro, não ficar ao cabo de uns minutos encharcado e com a sensação de ter esperado com eles lá fora que ela parasse de cair.

Além disso, era inevitável possuir muitos animais. Sempre seguido do fiel amigo, por onde andasse, um rafeiro de quatro patas seguia-o como se fosse de todos o cão mais feliz do mundo, por reconhecer no dono um amigo que o estimava.

Lembrei-me de evocá-lo na presente semana, por alturas de estar a cumprir-se um ano que nos encontrámos perto de minha casa e ficámos a conversar de jogos antigos e amigos que connosco têm em comum o facto de não nos vermos há muitíssimo tempo. E era inevitável que ele tivesse muitos. E talvez passe a ter alguns mais a partir da leitura final desta crónica. Pelo menos, aqueles que acreditam em seres fantásticos e na existência da criança que permanece a cumprir os sonhos que existem dentro de nós.