Em Benaiú sinto-me em casa!

Cheira-me a Benaiú de cada vez que entro agora num avião para ir a qualquer lado, mesmo que não seja de férias.

Três da tarde de um dia qualquer de julho, Aeroporto João Paulo II, cidade de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, arquipélago dos Açores.

Na pista, diante de uma aeronave de bandeira britânica que aguarda autorização para levantar voo, um homem parado de mãos erguidas à altura da cabeça, faz uma estranha sinalética ao piloto no interior do cockpit, que começando a ficar impaciente, se não tivesse todas as janelas fechadas, na forma de comunicação oral já lhe teria dado um raspanete e mandado sair dali para poder iniciar a marcha com destino a Londres.

A não ser pelo reflexo prateado do colete que envergava, mal se daria por ele, equipado de cor igual à fuselagem do avião em pano de fundo, que há muito teria levantado voo se em vez de só acenar com os braços, o homem indicasse a pista de aceleração a fim de iniciar as manobras.

A temperatura do ar permanecia estável. Estava abafado, embora de manhã tivesse caído uma morrinha que se não desse para atestar o nível de uma barragem, sempre serviria para arrefecer os ânimos dos passageiros mais exaltados que não viam a hora de iniciar a sua viagem.

Bruno (nome fictício para disfarçar a identidade desta personagem que imediatamente todos os açorianos reconheceriam) entrou no aeroporto levando uma valise de mão à frente de um trólei de roupa fechado a cadeado, no fundo do qual é que devia ter guardado o pente ou já o teria sacado para, mesmo diante de toda a gente, a partir da farta cabeleira pôr ordem nos caracóis em desalinho.

Era um jovem muito atraente, a quem nem que alisassem o cabelo todo retiraram metade do charme que detinha e constituía uma parte importante do seu encanto. Exibia-o com grande à-vontade, como um futebolista habituado aos grandes palco que não esmorece mesmo em ambientes adversos.

Desde pequeno, a par do gosto pela aventura, a mãe estimulara-lhe a paixão pelas viagens, que tanto maiores eram quanto o número de páginas dos livros que ela lhe dava para ler. Foi a partir da fantástica viagem à volta do mundo de Willy Fog que nasceu o bichinho de um dia fazer uma viagem de balão, e das defraudadas tentativas de fuga de Robinson Crusoé, da ilha onde viveu durante anos na sequência de um naufrágio, que percebeu que, em alternativa a poder ir de avião, não era de barco a forma mais segura em que podia pensar para sair dos Açores.

Por causa da enormíssima barba, que deixara crescer como algo em que a namorada tivesse por onde pegar sem ser só por ter a mania de deixar levantada a tampa da sanita, Bruno fazia bastante sucesso junto das mulheres, sobretudo das que, num homem, o que mais apreciavam era que ele não obedecesse a todos os caprichos da namorada.

Mas a juntar àqueles, não tardou que entre ambos, por causa de uma tatuagem, nascesse um novo motivo de discórdia. Ela não gostou de ver-lhe tatuado no braço, um açor de asas abertas como se representasse ele sentir-se, menos do que ela, preso a uma relação que desejava duradoura e por isso discutiram. Em consequência disso, na altura própria fez as malas e escolheu para ir de férias sozinho, o primeiro sítio no mapa para onde olhou a pensar em divertir-se na companhia de quem, por nunca o ter visto, não estranhasse vê-lo comportar-se de maneira mais exuberante que o habitual.

Adquiriu um pacote de férias que incluía viagem de avião com escala em Lisboa e lá foi direito a Benaiú, estância de veraneio num lugar remoto do planeta de onde não constava que algum dia tivesse vindo bom vento ou bom casamento.

Conheci-o na fila do check-in e viajámos lado a lado. “Você e eu somos cascalho.” Diria mais tarde aludindo ao facto de lamentavelmente nos terem colocado sobre a asa do avião, donde não se vislumbrava terra no momento em que o aparelho ganhava altura.

Por agora, falava alto com uma funcionária do aeroporto que a custo tentava mantê-lo na fila de espera, naquela que devia ser a segunda função na sua lista de prioridades, já que a primeira era ir-lhe pedindo o favor de falar mais baixo para não incomodar quem ali estava como ele há mais de meia hora. Estava nervoso, algo agitado, como se tivesse bebido demasiado e repentinamente incomodado por não saber como disfarçar para ninguém perceber.

Estava posicionado mesmo à minha frente, pelo que era impossível não escutar tudo o que dizia, a menos que estivesse mais atento à conversa do casal de lésbicas que ocupava precisamente o lugar a seguir ao dele.

De olhos inchados, Bruno assemelhava-se a um lutador de boxe, num ringue à espera de se atirar ao pescoço do primeiro que ousasse defender a pobre funcionária, já em paciência até para atender às pequenas queixas dos utentes que estavam fartos de ouvi-lo e pediam para mudá-lo de sítio. Foi-se embora e deixou-nos curiosos por ver a reação do casal de lésbicas, que se agarravam uma à outra como se alguma delas receasse ver a sua parceira sair atrás da mulher vistosa a quem a farda de saia e casaco dava um ar elegante.

Vou para Benaiú” confidenciou-me “E o senhor? Em Benaiú sinto-me em casa”. “Eu também” respondi, sorrindo com o facto de atendendo à pronúncia da ilha de S. Miguel, poder haver quem não entendesse o que ele dissesse. Aludi às vantagens de irmos para Espanha, um país com praias de areia fina e temperatura da água amena como noutras paragens do norte de África.

Vou para Benaiú e já me sinto como se estivesse em casa!”, Gritou para todos ouvirem, expondo-me ao ridículo de não saber se deveria rir ou chorar da desilusão que iria sentir se o lugar não fosse tão divertido e bem frequentado como o pintavam. Tornámo-nos amigos ao fim de pouco tempo e sócios, num negócio de congelados que para toda a Península Ibérica enviava o que de melhor se produz nos Açores a partir do mar.

Escrevo a partir de Estocolmo, sentado na varanda do quarto de hotel, à vista de uma praça apinhada de gente e para onde vim, num merecido descanso, para manter-me longe dos afazeres profissionais. Agora, não é de Benaiú que sinto mais saudades, porque cada vez mais presente, de cada vez que entro num avião sinto o cheiro da maresia característico dos dias que lá passei. É sim da presença do meu amigo, sempre alegre e comunicativo. Desta vez não pôde vir, coitado. É que, até ao meu regresso, daqui a duas semanas após um curto périplo pela Europa, alguém tinha de ficar em terra … pois, para dar continuidade aos negócios.