Filhos que nos emprestam

Marta. Desde Mil Novecentos e Sessenta e Seis. Cinquenta anos. Dotada de um coração cheio de açúcar. Colheres de açúcar. Experiências de vida. E dois filhos trabalhosos: o Zé Maria e a Inês Maria. De nove e onze anos, respectivamente.

Obrigado pela dedicação. Obrigado pelo espaço afortunado. Para mim. E para todos os amores com açúcar. Ou para os nossos filhos. Que é a mesma coisa.

Os nossos filhos são a nossa maior e mais emblemática paisagem artística que podemos vislumbrar. E deslumbrar. Um retrato que, no fundo, não nos pertence. Uma imagem do mundo. Mesmo emprestados pelo planeta, são parte da nossa existência. O nosso batimento cardíaco é deles. Pertence-lhes como um dado adquirido. É inevitável. Assim como os ensinamentos básicos da vida. Que é sempre uma tarefa árdua. Mas necessária. Podemos dar a volta ao destino, contudo, na bagagem cultural da vida não podemos aldrabar a humildade, a humanidade, a disciplina, a generosidade, e a gratidão. Os ingredientes necessários. Os nossos filhos são o nosso maior e mais valioso tesouro. Um texto realista de José Saramago.

“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar os nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem.

Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente da incerteza de estar a agir correctamente e do medo de perder algo tão amado.

Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.”

 

Mas não nos podemos esquecer que são mortais. Os nossos filhos. E os dos outros. Que fazem parte de um cenário com princípio, meio e fim. No intervalo, que é o tempo de amar, devemos torná-los autónomos, libertos. Depois de uma determinada idade, apenas os conselhos são válidos. Nada mais. E é tão pouco para tanto sentimento. A atitude do corpo desagua num mar de maturidade. Ajuda-os nesse sentido. A liberdade. O sofrimento é um estado ininterrupto. Quando produzem escolhas diferentes. Ou quando padecem das preferências que detalhamos. Contudo, até as ocasiões mais fúnebres escondem as mais diversas alegrias. Ou soluções. Que podem ser encontradas dentro da nossa alma.

O preceito é o fundamental da vida. O amor pelos animais. O amor pela natureza. O amor pelas borboletas. O amor pelos livros. O amor pelas poças de água. O amor pelas cantorias no chuveiro. O amor pelo sorriso. O amor pelo recomeço. O amor incondicional. O amor pelo fazer o bem sem olhar a quem. O amor pelo próprio Eu. Ensinar que ser é melhor que ter. Um esforço de mil abóboras. Deixá-los partir. Um dia. Deixá-los partir é o único desfecho admissível. Não os podemos submeter ao frio intenso. Congelá-los. Para que fiquem sempre pequeninos. Dentro de nós.

Na Roménia havia e premissa de que uma criança realizada com afecto era sempre carregada pela Cegonha. A aclamada “Noite das Cegonhas”. Uma noite de Abril. Ao cair do pano, sozinhas ou a pares, as Cegonhas abandonavam os seus ninhos e evaporavam-se no céu penetrante.

No decorrer dessas noites, a tradição imperava; as meninas da terra tinham total liberdade sexual, e as crianças nascidas nove meses depois eram despoletadas pelas Cegonhas. Crianças do amor. Sempre bem regadas de carinho e sem transtornos adicionais.

Sou uma Cegonha feliz. Uma Cegonha arriscada, corajosa, que não teme o fracasso das relações humanas.

Filho: forma de tratamento carinhosa. Efeito. Obra. Um teste eficaz aos nossos próprios limites.

Não chorem. Os meus filhos. A vida é uma luta renhida. Viver é combater. Apenas os fracos vão ao chão. Os fortes exaltam-se. Vencem. Os meus filhos. O meu sangue. A certeza da minha existência. A descoberta de um amor contado com toda a veracidade. Os meus filhos não são meus filhos. São filhos da vida. Embora estejam sempre comigo, não são meus.

Todos nós carecemos de raízes. Assim como de ar para respirar. Principiar o aparecer. A língua aprendida. O lugar dos antigos que agora é nosso por direito. E devemos preservar.

Voo. Uma série de movimentos de asas. Desperto novas perspectivas. Absorvo novos sonhos. E aprendo com eles. Feliz.

Sou a ponte que transporta a paz interior. Não a Vasco da Gama. Ou a Vinte Cinco de Abril. Outra qualquer. Por construir. Só para ti, minha querida Inês Maria. Só para ti, meu querido Zé Maria.