Grito de alerta – 2

Caros senhores,

Permitam-me contar-vos uma história. Uma história que não difere das muitas que ouvi na infância a começar por “Era uma vez…”, na medida em que também esta, quando a começamos a ler, esperamos que venha a ter um final feliz. E é para dar-lhe esse final feliz que me dirijo a V. Exas. esperando, na concretização desse objetivo, vir a contar com a vossa preciosíssima ajuda.

Conto-a na terceira pessoa, falando de uma pessoa por quem tenho muita estima, mas com o distanciamento necessário a poder narrar alguns acontecimentos da sua vida sem me deixar influenciar pelo facto de sermos colegas de trabalho e amigos.

Chama-se Amália. Amália Rodrigues, mas não sabe cantar e de fadista, além do nome, nada mais tem que não seja um par de olheiras, por culpa das noites mal dormidas em por causa das dores nas costas, mal prega olho e de ar cansado quando acorda, dá a clara sensação de ter passado a noite inteira a cantar o fado.

Vive num lugar modesto, perto do local de trabalho, localizado em Odivelas, nos arredores de Lisboa, onde desde há quarenta e dois anos é uma pessoa respeitada mesmo por quem ali mora há menos tempo e, sem saber por que sítios ela já andou, tem a certeza de que dali já não sai.

Nasceu há sessenta e dois anos num lugar dos arrabaldes de Castro D’Aire, a norte do país, mas aos onze anos, por razões que a vida se encarregaria de justificar, emigrou com os pais para Angola, onde viveu feliz, sobretudo quando casou e, na companhia do marido, cumpriu o sonho de ser mãe. Residia em Luanda e da capital angolana só teve de regressar mais tarde a Portugal. Foi em mil novecentos e setenta e quatro, e já adulta regressou constrangida a um país do qual já não se lembrava tão bem como da primeira casa onde foi viver com os pais em África.

Amália tornou-se retornada, por força do movimento revolucionário que conduziu à independência daquele país e, ao sair, para trás, ficou a antiga profissão de empregada de escritório, assim como a esperança de, a curto-prazo, só regressar a Portugal de férias, de visita à família que residia na província.

No regresso à metrópole, carregando o pai acamado devido a uma trombose, Amália, com o marido e o filho, um petiz de apenas três anos, enfrentou as primeiras dificuldades logo à chegada. Sem amigos nem família próxima a quem os quatro pudessem recorrer em busca de amparo, foi primeiro viver para Campolide numa casa a meias com um casal em situação idêntica à sua e só posteriormente pôde sair para aquela onde presentemente vive, agora só com o marido porque ao filho, que entretanto cresceu, ensinou a voar com as asas que ela própria lhe deu.

Amália viu-se desamparada, como alguém a quem, por pouco, não chegava demasiado tarde toda a ajuda que nesse instante lhe pudessem dar. Recorreu à cantina do IARN para comer e para poupar o dinheiro de uma deslocação, ia de Alcântara a Odivelas a pé. Porém, ultrapassado o choque inicial de não ter uma casa que pudesse chamar tão sua como à roupa que trazia no corpo à chegada a Lisboa, com uma escassa bagagem de mão que era praticamente tudo o que tinham, esta mulher teve de lutar pela sobrevivência e para isso foi à procura de trabalho.

Passou por diversos ofícios. Começou por vender gelados e pacotes de batata frita na praia, depois sandes e bifanas aos adeptos nas roulottes que acampavam junto aos estádios de futebol e, finalmente, lá se empregou numa escola agora chamada do primeiro ciclo do Ensino Básico, repleta de crianças até aos dez anos, onde permanece há trinta e dois, na secção de limpeza. Pelo meio ainda vendeu hortaliça aos transeuntes no meio da rua e, de alguns clientes, até ouviu dizer que era uma pena estar a perder-se sem ter um lugar na praça ou uma loja própria onde pudesse ganhar melhor a vida.

Apesar das dificuldades por que passou, Amália é uma mulher generosa, determinada e se mais gente estivesse disposta a seguir-lhe o exemplo de tenacidade, por certo haveria muito menos pessoas desmotivas por falta de atitude para enfrentar os problemas. Tem um filho, nora e três netos, que a adoram. Continua casada, mas o marido, a ser seguido nas consultas de Psiquiatria do Hospital do Dr. Júlio de Matos, em Lisboa, foi entretanto reformado. Foi há tempo suficiente para já ter percebido que melhor seria ter continuado a trabalhar, para ao fim do mês ter a oportunidade de levar mais dinheiro para casa.

Atualmente, uma parte considerável do rendimento de ambos, destina-se a ser gasto na farmácia, na compra de medicamentos de suporte à vida, que lhes permitem continuar a apoiarem-se um ao outro, numa altura da vida de ambos em que, com a velhice à porta, nem sempre têm dinheiro para comprar os bens necessários a encará-la com otimismo.

Não que em troca do serviço que presta no trabalho, não receba a devida remuneração. Ali é feliz e sabe que no que depender da qualidade do seu serviço, não há, felizmente, motivos para as crianças não serem felizes. Recebe pontualmente o ordenado, mas as despesas são tantas que, à medida que se aproxima o final do mês, estas parecem multiplicar-se, como se a juntar à falta de dinheiro ainda precisasse que lhe lembrassem de tantas coisas em que se o tivesse precisaria de gastá-lo.

Amália é uma mulher voluntariosa e nesta altura precisa seriamente de ser ajudada para poder continuar a ajudar os outros. Tenho a sorte de pertencer ao lote de pessoas que convivem com ela diariamente e neste sentido gostaria de pedir a V. ajuda para a troca de óculos, com lentes novas que ela não compra há mais de dez anos e para os tratamentos de medicina dentária que possam restituir-lhe a alegria, que é juntamente com a simplicidade um dos traços com que nós, em poucas palavras, melhor definimos a sua personalidade.

Chamo-me António e por intermédio de outra nossa colega, autora da iniciativa que me lançou o desafio de escrever este texto, é que me dispus a ajudá-la, na tentativa de vê-la superar o desgosto de, perante tantos pais de crianças com quem fala diariamente, nem sempre se atrever a sorrir, com vergonha da falta de dentes que, na boca de um adulto, pode querer dizer que é pobre.

Ficamos na expetativa da V. apreciação a este e-mail, que certamente merecerá a V. melhor atenção. Agradecemo-la, desde já e mesmo que a resposta a ele não vá no sentido de, na rubrica do programa das tardes de segunda a sexta, poderem ajudá-la, estou certo de que terá servido para nós, como colegas e amigos, na tentativa de praticar uma boa ação, já termos dado por muito bem empregue o tempo.

Com os melhores cumprimentos.