A filha da Celeste é puta

Estava um lindo dia de sol, quando Celeste, distraída às compras, ouviu Rosa Mulata sussurrar alguém que a filha dela era puta.

Puta de ofício, puta dos quatro costados, da falsa raiz das extensões, ao verniz lascado na ponta das unhas de gel, deixadas tão ao desleixo que não tinham propriamente ponta por se pegar.

Parando para ouvir melhor a conversa, achou, ao princípio, que estaria a ouvir mal, os anos passavam e já não ia para nova; depois que seria uma infeliz coincidência, além de estar matriculada uma aluna com o nome igual no mesmo ano da Faculdade a tirar Economia, ela namorar faria nessa semana três meses, provavelmente com o único brasileiro a viver em Miragaia que não bebia a sua cervejinha nem gostava de futebol.

Era sobre isso que comentavam as duas mulheres, Rosa Mulata em tom de quem com ferros mata, com ferros morre, ainda aziaga de terem lançado no bairro o boato infundado de que o filho era gay, veado dos quatros costados, do gel adelgaçante nas coxas, às pestanas postiças, tão falsas como a imagem que queria difundir de uma pessoa que vivia feliz com os atributos herdados à nascença.

Não a ouviram aproximar-se as duas mulheres, para quem falar da vida alheia era um muito maior motivo de satisfação, do que a respeito delas ouvirem alguém falar bem.

Verdade que Celeste andava desconfiada do estilo de vida da filha, mas também era motivo de orgulho vê-la, a partir da mesada de trinta euros que lhe dava, conseguir pagar almoços na Faculdade e ainda poupar para mudar de telemóvel, de três em três meses, sem falar nas idas à neve no inverno, nas férias de verão, em praias paradisíacas de areia fina que davam bem uma imagem de como ela gostaria que fosse o areal na praia da Aguda.

A ideia do curso de Economia fora do marido, director financeiro num grande grupo económico, com queda para os números mas, vendo a filha, incapaz de compreender que dois mais dois eram quatro e quatro sinónimo de quatrocentos que, no caso dele e no tocante a qualidades, não era exagerado multiplicar por cem as que à filha diziam respeito.

O que sem exagero podia afirmar-se, era que, desde o ensino básico, ela granjeava fama de arrastar grande número de admiradores, de ambos os sexos, das variadíssimas raças e orientações sexuais, até conotados entre si com políticas de ideologia oposta. Percussora do hábito de seguir as celebridades nas redes sociais, tinha sido precoce sob diversos aspectos. Aos catorze anos tinha a maturidade duma mulher que começava a namorar aos dezanove; e com vinte gabava-se de grande experiência de vida, achando talvez que podia resumir-se ao facto de acumular um número elevado de relacionamentos amorosos.

Com o último namorado a levar lá a casa, não passara tempo suficiente para achar que estivera numa relação. Após terem-se conhecido online, marcaram encontro e começaram por ver-se todos os dias, mas passado o impacto inicial da relação, ao fim dumas semanas o interesse dele nela diminuiu na proporção direta ao número de sms’s que andaram a trocar. Como se um inseto parente da mosca que causa a doença do sono o tivesse picado e nem uma promessa de beijos o despertasse para o sonho de vir um dia vir a acordar tendo uma mulher tão bonita do seu lado.

Mesmo entre os amigos, a perda de entusiamo não deixou de causar estranheza, tanto mais que, sendo os dois tão bonitos, formavam um casal perfeito. Ela extremamente elegante e ele de ar másculo a provocar calafrios nas melhores amigas dela sonhavam ocupar o seu lugar. E não fosse acreditar que, por causa do estudo intenso prós exames, o rapaz andava esgotado, acharia que ele andava a evitá-la, como quem foge ao cumprimento dum dever, muito embora quando se trata de agradar à mulher amada, nenhum implica um sacrifício tão grande que, ao fim, um beijo não possa compensar.

Um dia, ele telefonou-lhe a horas tardias, para desmarcarem irem no dia seguinte ao cinema ver a estreia duma comédia e tirar conclusões em como há semelhanças entre um romance contado em tom de comédia e um drama em tom de suspense, quando no final os protagonistas dos enredos se juntam e vão viver felizes num paraíso longe de tudo e de todos.

A pretexto de estar tão cansado que, nem para sentar-se na plateia ao lado da atriz principal, estaria disposto a largar o pijama, pediu desculpa à namorada e prometeu deitar-se tão cedo que desligaria o telemóvel e só responderia às mensagens na manhã seguinte. Deu-se, contudo, o caso de os bilhetes já estarem comprados, pelo que para não perder o dinheiro que tinha gastado, a filha de Celeste escolheu para acompanhá-la uma amiga ao lado de quem se divertia tanto que qualquer um percebia que não era só com o namorado que estava em boa companhia.

Não precisou de esperar por esgotar a lotação da sala, para, com total surpresa, vê-lo assomar-se das primeiras filas e ir-se sentar levando um balde de pipocas, ao lado dum bonitão com quem não se ralaria nada de tirar uma selfie em fato de banho. Viu-os cumprimentarem-se com um aperto de mão caloroso cujo significado era o de estarem há tanto sem se ver, que bem trocariam o toque das mãos pelo calor dum abraço. Depois viu o namorado oferecer o balde das pipocas ao amigo e enfiar-lhe uma mão cheia delas na boca, numa demonstração de afeto a que não seria estranho saber já se ele as preferia doces ou salgadas.

Ficou por ver a reação do amigo e da amiga à sua cara. Furiosa, levantou-se e furou caminho por entre as pessoas, até se livrar de que o namorado ao virar-se pudesse vê-la e perceber o motivo de não querer sequer tornar a vê-lo.

Depois desse, continuou a conhecer rapazes, porque apesar da deceção sentida na traição não deixou de gostar do género. Pelo contrário. Muitos foram e vieram sem lhes dar a veleidade de saberem se os amava, mas daí a tornar-se puta vai uma grande distância. Tão grande como a que falta percorrer, a um corredor de cem metros, para completar uma maratona. E demoraria mais tempo do que a percorrer uma ao pé coxinho, até voltar a acreditar sem desconfiar da aparência, que nem sempre tudo é aquilo que parece.

FIM