Acerca de “Crime e Castigo” – Fiódor Dostoiévski – Lúcia Reixa Silva

Hoje resolvi voltar à literatura e desta vez reflectir acerca de uma das minhas obras literárias preferidas – “Crime e Castigo”, escrito em 1866 por Fiódor Dostoiévski (escritor russo nascido em Moscovo, a 11 de Novembro de 1821, falecido em São Petersburgo a 9 de Fevereiro de 1881).

O romance filosófico retrata um crime hediondo cometido por um jovem homem, Rodion Românovitch Raskólnikov, e aborda desde as circunstâncias que podem levar um homem a cometer um crime desta natureza de forma quase despropositada mas reveladora de um enorme desrespeito pela vida do próximo, por um lado, e um enorme desespero a que não é alheia a cultura onde se insere e desenrola a história…

No entanto este é apenas o começo desta densa história onde, pessoalmente, o que mais me faz pensar e reflectir sobre ela, é a perversão moral, uma espécie de sado-masoquismo moral, de resto muito característico do autor em quase todas as suas obras, mas levado ao seu extremo neste romance, onde a punição moral que vai corroendo o jovem homem é a verdadeira trama e odisseia que faz desta história uma fabulosa análise ao mais profundo Eu, passando de forma fiel pelo envolvimento das três instâncias freudianas Ego, Id e Super Ego, ainda antes das mesmas terem sido “descobertas” pelo Pai da Psicanálise, e onde o Ego – ou o Eu do jovem homem protagonista da história, aparece completamente amarfanhado e “enjaulado”, em constante penitência, por uma acção do Id – o seu aspecto animal e dos impulsos que o levou de certa forma a cometer o crime hediondo que a história relata, que é punido de forma terrível por um Super Ego – a parte moral e social na verdade presente em todos nós, em termos de instância psíquica ou subdivisão mental, mas que neste caso é extremamente castrador e punitivo, perverso até do ponto de vista moral, fazendo com que o jovem homem se encontre neste dilema terrível, onde a sua maior punição pelo crime é na verdade ele próprio, a sua consciência, a culpa, o seu medo ou pavor de “ser apanhado”…

O drama vai-se desenrolando, fazendo com que o homem quase enlouqueça durante toda a história, e na verdade só consegue um pouco de paz quando, contra todas as expectativas e contra toda a lógica, se “entrega” ao polícia-detective com quem vai “contracenando” durante a trama…

Na verdade, naquela época, a punição na Rússia passava muitas vezes pela prisão em campos na Sibéria gelada, onde os dias pareciam intermináveis e as noites um inferno gelado…

Alguém condenado por um crime de homicídio passaria sempre por uma pena pesada, habitualmente o resto da sua vida num deste campos-prisão…é pois o destino provável que esperaria o nosso protagonista…

Assim sendo, e apesar da multiplicidade de interpretações que um romance desta natureza pode proporcionar, sem que uma esteja certa e outra errada, e que apenas possam ser diferentes, na minha interpretação, apenas uma enorme dor e uma intensa culpabilidade, de um peso inestimável, poderia levar alguém a auto-condenar-se desta forma, depois de todo o “trabalho” que teria tido em parecer sempre inocente, depois dos crimes que foi cometendo, nomeadamente o primeiro crime hediondo que comete passa precisamente pelo medo “de ser apanhado” e serve para que não o seja, na verdade…

De um avassalador conteúdo psicológico e filosófico, este romance retrata de forma única o ser humano e as suas circunstâncias, o Id que comete o crime e o Super Ego que o condena, o Ego – Eu que surge como absolutamente subjugado, primeiro a uma, depois à outra instância mental…fazendo com que a perversão moral vá fazendo do mesmo sujeito sádico e masoquista, conseguindo pois chegar a um extremo tal da sua própria entrega a uma condenação provavelmente para sempre…A culpabilidade imensa do sujeito, faz com que a sua consciência não mais permita que a sua vida se desenrole de forma normal…

Recomendo pois uma leitura atenta desta obra, ou um olhar outra vez para ela, com “outros olhos” talvez, porque a obra e o autor o merecem, e vale mesmo a pena…

Relativamente ao mundo deste século, onde todos nós de vez em quando proporcionamos a nós mesmos alguma perversão moral, em que a culpa nos leva a uma auto-punição, pois acho mesmo que tal não deve acontecer e devemos fazer um esforço para que nada disto seja preciso nas nossas vidas…o equilíbrio do nosso Eu, e obedecermos sobretudo à nossa consciência, permitirá possivelmente que os nossos actos sejam de acordo com a mesma, e que abandonemos o recurso simples aos nossos impulsos mais arcaicos, por um lado, e por outro lado que o nosso Super Ego deixe de ser tão pesado e tão punitivo…A essência está num Eu equilibrado, que não cedendo aos impulsos mais básicos a todo e qualquer momento, possa pois expressar-se de forma livre de um Super Ego que castiga…É este Eu fortalecido que deve predominar em nós…começando pelas pequenas coisas: aquele comentário impulsivo que não deveria ter sido expresso, aquela palavra menos bonita que devíamos ter contido, enfim, uma maior disciplina do nosso Id, para que o nosso Super Ego também seja menos expressivo, e menos punitivo na verdade…

Crime e Castigo retrata o extremo, para mim, da cedência ao impulso e da culpabilidade castradora e punitiva que se lhe segue…

Na nossa vida, um Eu fortalecido consegue equilibrar talvez estas duas vertentes, permitindo que a liberdade e a consciência possam conviver sem crime…e sem castigo…

Tenham uma boa semana!

 

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Crónica de Lúcia Reixa Silva
De Alpha a Omega