Anónimos como nós

Na casa dos trinta anos, esta mulher de olhar triste e sorriso cativante, tem uma historia de vida para contar, apesar de ter acontecido há vinte e sete anos atrás, transporta-nos facilmente para os dias de hoje.

Não sinto falta do meu pai.

Recorda-se do pai a ir visitar a casa da mãe, tinha ela três anos (a memória mais regressiva que a nossa mente consegue ir), desde esse dia nunca mais viu o pai…

As únicas coisas que sabe a respeito do pai são o seu nome completo, Fernando António Ferreira Cardoso, que estava divorciado, tinha dois filhos da relação anterior, que era muito mulherengo, que seria mais velho talvez uns dez anos que a sua mãe, que conduzia um carocha preto com uma caveira e ainda, que ela era muito parecida com o pai.

Tem em sua memória o que a mãe lhe disse quando era miúda acerca do pai: Eu estava a cortar-te as unhas dos pés, magoei-te, tu começaste a chorar, o teu pai chegou à nossa beira e deu-me um murro. Nesse dia saí de casa. Isto, somente isto, apenas isto, meras palavras. Até hoje não soube absolutamente mais nada…como se não tivesse esse direito de saber o que realmente aconteceu.

No Natal, aniversários, dia do Pai (cujas prendas eram entregues ao namorado da mãe pelo qual ela não sentia qualquer empatia apesar do contacto ser frequente), não sentia falta do pai, não tinha qualquer curiosidade em conhece-lo. Relembra que as pessoas ficavam admiradas por tal afirmação, mas como a própria argumenta: Eu só tinha na cabeça que ele foi embora e me abandonou. E isso nunca influenciou negativamente a sua infância nem adolescência,  porque ela nunca viu a sua mãe sofrer com esse abandono.

Sentes magoa pela tua mãe não ter tomado nenhuma atitude naquele dia e durante todos estes anos? Achas que ela tem culpa?

Ela devia ter exigido um pai para a filha, mas não me sinto magoada com a minha mãe. Ela não tem culpa, o meu pai é que nos abandonou.

Tem a sensação que a mãe disse alguma coisa de muito grave ao pai, para que o motivasse a desaparecer de suas vidas. Talvez a minha mãe tenha dito ao meu pai que eu não era filha dele.

Acha estranho os familiares não saberem nada do seu pai, acha anormal tantas contrariedades nas historias que lhe contaram sobre a sua infância.

Tem varias fotos do pai com ela ainda bebé, guarda no seu álbum de recordações,  mas nunca choramingou, chorou, se emocionou sequer ao olhar para elas. Há partes da nossa mente que se desligam dos sentimentos propositadamente, e ainda bem que assim é.

Outra situação que acha deveras insólita é, sabendo nós que o mundo é pequeno, a possibilidade enorme de encontrar os seus irmãos é grande. Quem me garante que na minha adolescência não me cruzei com algum irmão meu e que até namorisquei com um irmão? Não dá para calcular a irresponsabilidade enquanto pais numa situação medonha como esta.

Questionei-a se gostava de encontrar o pai, ao que ela respondeu prontamente que sim.

Queria sobretudo saber como é possível um pai abandonar um filho.

Tenho uma grande capacidade para compreender as pessoas, os seus actos eu não julgo, coloco-me facilmente no lugar de uma pessoa para conseguir inferir o seu comportamento, mas um pai abandonar o próprio filho ultrapassa a minha compreensão. Gostava de ouvir o que ele tem para me dizer.

Como ela afirma e eu própria concordo, infelizmente por experiência própria, a ligação de um pai não é igual à de uma mãe, por isso é muito fácil um pai desligar-se completamente dos filhos no dia-a-dia, e até para toda a vida como o meu fez. Embora haja excepções, como o pai dos meus filhos que é maravilhoso, e o avó dos meus filhos que é igualmente fantástico.

Hoje verifica-se o que não era possível há três gerações atrás sensivelmente, o apego. Se há alguns anos atrás, um pai por jogar à bola com o filho já era bom pai, hoje em dia, com todas estas alterações positivas da sociedade, jogar à bola já não é suficiente. Cuidar, brincar, educar, respeitar e sobretudo amar são as palavras de ordem que todos os pais deveriam ter como prioridade máxima em suas vidas.

Se encontrasses o teu pai, qual era a primeira coisa que lhe dizias?

( Sem abraços, beijos, nem lágrimas) Porque é que desapareceste?

Artigo de Sandra Castro