“Armando Bernardo Cutileiro” – A Memória Mais Antiga

Assaltam-me, frequentemente, lembranças do passado que representam a minha ligação ao mundo nos últimos oitenta e cinco anos. Chamo-me Armando, trabalhei grande parte da vida como cutileiro e noto que a minha primeira memória de infância é de uma viagem de camioneta com três feita anos entre Alcoentre e Lisboa, mais concretamente o bairro em construção do Prior Velho, que fora o mais perto da capital aonde o meu pai tinha conseguido uma casa para ficarmos a viver.

Lembro-me do desconforto de viajar sentado como se fosse num banco de pau, atento aos pormenores da paisagem mas atento a que sob o olhar vigilante da minha mãe, aconchegado ao colo dela o meu irmão dormia, sorridente, como se sonhasse que ela à chegada haveria de apresentá-lo às vizinhas, para encher de mimos antes de ser levado para a cama.

O céu amanhecera sem nuvens e nem o frio na manhã de outono circunscrevera as aves ao conforto do ninho, fazendo-as chilrear à passagem da camioneta, como se mal acordassem quisessem vir saudar-nos enquanto esvoaçavam pelas redondezas buscando alimento para o sustento das crias. Pela janela, eu achava piada à aproximação dos bandos e às manobras arriscadas sobretudo dos pardais, que pulavam irrequietos das árvores descrevendo um arco em torno da camioneta, como se formassem um corredor ao fundo do qual vermos luz equivaleria a dizer que estávamos próximo de chegar.

O ar estava gélido como se há muito tempo não chovesse, e por ação do sol, que incidia de frente no pára-brisas, o motorista da empresa Capristanos & Ferreira não conseguia ver claramente para ver o que se passava na estrada ao longe, com a antecedência necessária para prevenir um acidente. De ombros caídos no lugar da frente, recordo a figura dum sujeito magricela a quem ficava mal um casaco largo como o de um palhaço, a contrastar com o semblante sisudo que não daria a nenhuma criança vontade de rir. À cautela, fazia circular a camioneta em marcha lenta, tão devagar que cumpriria certamente o limite de velocidade imposto à circulação no interior duma localidade, e ainda bem, porque tanto reduzia ao mínimo o risco de acidente a que estaríamos sujeitos numa viagem demorada, como o inconveniente dos solavancos numa estrada pejada de buracos, e até o perigo do enjoo, decorrente de tantas curvas, mas felizmente não tantas como sofreria no trajeto de travessia duma serra.

Prevendo uma viagem longa, para compensar quis pensar nalgo agradável. Por exemplo, em que à primeira oportunidade a minha mãe nos trocaria de lugar e, nem que fosse por breves instantes, na posição cimeira que o meu irmão agora ocupava, ser-me-ia dado ver uma perspetiva da rua só alcance dum adulto ou de antes me terem sentado sobre uma pilha de almofadas. Até lá ou enquanto não parávamos num apeadeiro para fazer chichi e eu pudesse esticar-me, contentava-me em admirar no céu a coreografia das aves e a paisagem dominada por árvores de diferentes espécies, imaginando à chegada ao destino uma Lisboa rural como seria nos primórdios da industrialização.

Para trás, deixara assinalado a vinte e um de agosto o meu aniversário. Nascera no tumultuoso ano de 1935, e embora em Portugal e no mundo se assistisse incrédulo ao adensar de relações decorrente de acontecimentos que fariam perigar as fronteiras dos países contíguos à Alemanha, só esse acontecimento daria aos meus pais uma vontade ainda maior de festejar do que quando, dali a uma década, veio a esperada notícia da rendição do japão que poria termo à segunda guerra mundial.

Para trás deixávamos também Alcoentre, terra-natal ainda em vias de desenvolvimento, provavelmente de cariz ainda mais rural do que Lisboa na época da pré-industrialização, e no adeus definitivo a Alcoentre sobrava a lembrança do trabalho árduo dos meus pais nunca devidamente recompensado. Olhando para trás, em linha reta à perpendicular do horizonte, o lugar tornava-se cada vez mais distante, e com o passar dos anos mais próximo de ganhar celebridade pela má fama dos condenados que haveria de albergar no estabelecimento prisional que fora edificado, em tempo recorde, por operários abnegados, um deles o meu pai.

(CONTINUA)