“Armando Bernardo Cutileiro” – O mano mais novo

Não acertava à primeira com o nome do meu irmão. Era pequeno, tinha poucas sílabas fáceis de contar, mas custava pronunciá-lo bem, como a duma daquelas palavras que vêm no dicionário e não percebemos nada acerca do seu significado.

Desconheço as opções em cima da mesa no momento do batizado, porém, acredito que, a começar por R, Rui seria uma escolha mais sensata, feita a pensar na dificuldade que teria em dizê-lo uma criança como eu de três anos.

Deve ter havido alguma discussão em redor, mas ficou Rufino e até à idade se ser dotado de razão, sempre acreditei que a decisão teria sido influenciada pela escolha direta de algum familiar mais próximo ou por alguma alínea da lei que remetesse para os mais pobres a obrigatoriedade de pôr aos filhos, os nomes esquisitos que os ricos não quisessem usar.

Mas isso foi só até eu ser dotado também de maior sensibilidade e ter-me começado a soar aquela palavra, à musicalidade dum violino numa suite de Bach, sendo que o complemento Bernardo, representava adicionar outros instrumentos àquele, fazendo que soasse ainda melhor.

Rufino era um bebé simpático. Trazia de origem bochechinhas rosadas e vinha equipado com um sorriso bondoso, a predispô-lo para o homem generoso quem que haveria de se tornar. Recordo quando brincávamos às escondidas e, atrás de nós, lá vinha a nossa mãe como se jogássemos à apanhada. Ou quando encapotado no mato junto à casa, semiocultado pelos arbustos que davam pela cintura, era como se fosse um gigante da rota de Gulliver na demanda de aventura pelos quatros cantos do mundo. À minha mãe, faltava paciência quando vinha chamar-nos e eu rogava que não revelasse onde se escondia, a bem de o meu irmão continuar a acreditar que, além de mim, era ela outra pessoa que conseguia enganar.

Amiúde pedia-me que jogássemos à bola. Duas folhas de jornal embrulhadas numas meias rotas, serviam para fazer um enchumaço, depois duas pedras cumpriam o propósito de erguer uma baliza para aos pontapés enfiá-lo lá dentro. E cada vez que a bola entrava eu gritava bem alto golo, como se por ser o último, fosse aquele que mais valesse a pena celebrar.

Eramos o fator motivacional um do outro. Através do exemplo, eu motivava-o a chutar mais forte e mais alto, e ele a mim a rematar mais em jeito à baliza, obtendo golos de fino recorte técnico. Ao encontro de outros fatores de motivação, através do exemplo dos grandes clubes da época, também queríamos ganhar nos confrontos com a miudagem que vivia nas redondezas, todos a menor distância do que estão hoje na capital, os dois rivais da segunda circular.

Por volta da idade dos três anos, percebi que o meu irmão proferia muito bem o meu nome. Tão bem de forma clara e distinta, que rapidamente se descobriu quem lhe ensinou o palavrão que se ouviu um dia ao acaso. Clara também a advertência do meu pai e o castigo que me impuseram: uma semana sem brincar na rua, mas nem que fosse o dobro do tempo eu levaria a mal o descuido do meu irmão. Por essa altura, já eu me afeiçoara ao nome e a prova disso era achar que, em vez de Clark Kent, o super-homem devia chamar-se Rufino, caso trabalhasse como repórter no Diário de Alcoentre e fossem em Portugal que se dedicasse a combater o crime.

Rufino era uma criança notável, mas de realçar também era o esforço dos meus pais para aprendermos coisas ligadas à agricultura, a desenvolver um lado prático que viria a revelar-se útil. Num terreno contíguo à casa, eles criaram uma horta que funcionava como um laboratório no qual as provetas eram substituídas por ancinhos e tesouras de poda, e em cujos balões de ensaio germinavam as sementes que haviam de ser lançadas à terra. Antes de fazê-lo, a minha mãe separava as sementes por espécie num prato; depois chamava-nos e mostrava como se podia com um ancinho abrir um carreiro no chão para deitá-las; e por fim, repreendia-me por vir nas costas dela apanhá-las, equivocado, sem compreender que o objetivo do jogo era deixá-las numa cova tapadas com terra, adormecidas à espera de brotar como uma flor que desabrocha na primavera.

Durou esta brincadeira pouco tempo, mas o suficiente para perceber que pode o trabalho que nasce do esforço não resultar, se em equipa não empurrarmos todos o barco para o mesmo lado. Acho que o espírito altruísta marcou a nossa relação de irmãos porque jamais nos separámos, e com isso nunca os nossos pais tiveram de se preocupar, nem quando, chamados a partir, não lhes foi dado a perguntar se prefeririam permanecer em nossa companhia durante mais uns anos.

CONTINUA …