Assassin’s Creed: Odyssey – Um Pontapé Espartano Obrigatório (Review)

Assassin’s Creed dispensa apresentações! Durante 10 anos, muitas foram as aventuras através das várias encarnações da saga, que contaram também com a sua dose de altos e baixos, ao ponto de ser necessário um soft reboot com Origins, o ano passado, para reavivar a franquia. Levada pela exaustão dos jogos anuais, a saga não teve outro remédio senão reinventar-se, procurando na concorrência maneiras de melhorar. Não há como negá-lo, Origins bebeu de títulos como The Witcher 3: Wild Hunt e, com esta inspiração vieram também elementos de RPG nunca experimentados até então que, certamente, tiveram o seu impacto em todos os sistemas básicos do jogo, incluindo quests e, até mesmo ,no próprio cerne da sua jogabilidade.

Do Egipto Ptolemaico de Origins, a franquia decide agora voltar atrás em 400 anos, directamente para a Grécia Antiga num período de grande instabilidade politica. A Guerra do Peloponeso (431 a. C. – 404 a.C.) dividiu a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, e a Liga de Delos, liderada por Atenas, num conflito ideológico, entre oligarquia e democracia, mas também territorial, especialmente pelo controlo do comércio marítimo no Mar Egeu. Esta é uma oportunidade para o Ubisoft Quebec mostrar o que vale na construção histórica de uma grande parcela da Grécia Antiga, populada de várias figura incontornáveis como Sócrates, Hipócrates, ou Heródoto. Mas será que Odyssey é apenas uma repetição da formula do seu antecessor, ou trará alguma coisa de novo que o afaste de ser uma simples cópia noutra era histórica?

Em primeira instância, e como bónus, podemos analisar a versão adquirida para esta análise, especialmente porque a Edição Omega para a PS4 tem algum conteúdo extra que pode interessar a qualquer pequeno coleccionador. Para os grandes fãs há opções munidas de estatuetas na casa dos três dígitos, claro! A Edição Omega vem com um livro com a arte do jogo, mas também com um mapa onde se passa toda a aventura. E que mapa! Esta edição têm também um conjunto de peças de armadura que depressa perderam importância no grande esquema do jogo, e também uma skin para o cavalo do protagonista. Ao jeito do já antigo Mass Effect 3, Odyssey tem também duas capas, uma com Alexios e outra com Kassandra, sendo apenas preciso virar a respectiva capa e escolher a do verso. Durante as minhas incursões nas lojas parece-me que a capa com a protagonista Kassandra foi deliberadamente posta em segundo plano. Pode ser um pequeno detalhe, mas parece-me que seria mais construtivo que as capas fossem aleatoriamente atribuídas em vez de em todas as edições darem destaque a Alexios. Parece um pouco picuinhas, mas mostra que mesmo numa decisão tão boa e tecnicamente igualitária, há ainda uma certa misoginia que deve ser combatida. Pode ter sido coincidência nas edições que tive a oportunidade de visualizar, mas fica o reparo.

A história de Odyssey pode passar-se na Guerra do Peloponeso mas começa muito antes, na Batalha das Termópilas, onde o rei Leonidas de Esparta tenta travar o avanço persa, com Xerxes no seu encalço. Para quem viu 300 (2006) tem uma oportunidade de visitar uma versão mais realista do momento. A introdução serve para familiarizar o jogador com a história da Lança de Leonidas, a arma substituta das laminas secretas da saga. É uma pequena introdução, que depressa segue para o presente, onde Layla Hassan descobre a lança, tentando extrair DNA da mesma. O DNA é o veiculo para a escolha de protagonista, e aqui está a primeira diferença em relação aos antecessores, há efectivamente escolha de personagem. Kassandra e Alexios são as duas linhas de DNA possíveis, embora sem grandes limitações ou mudanças no decurso da narrativa. Para a nossa análise, escolhemos Kassandra, até porque não há nada mais libertador do que fugir da norma da série e aplicar alguma igualdade à equação. Embora existam críticas quanto à existência desta personagem, é importante referir como estudioso de História que Kassandra, tal como Alexios, é espartana e que, na Grécia Antiga os papeis de género eram muito mais estritos em Atenas, do que em Esparta, onde as mulheres podiam herdar terrenos e até tinham algum poder de influência, algo criticado por Aristóteles, que achava que os espartanos vivam influenciados pelo sexo oposto. Pensar que de facto existiu uma mercenária na Grécia Antiga pode ser raríssimo, mas isso só acentua a importância desta personagem no grande esquema das coisas. Durante a narrativa não existem grandes reacções à existência de uma mulher mercenária, e isso pode ser um pouco “irrealista” e até injusto, uma vez que a condição social das Mulheres não é representada cruamente para análise critica daquela época histórica, no entanto, é compreensível esta outra rota, a bem de um mundo igual e alternativo que também apresenta animais mitológicos e civilizações alienígenas perdidas.

Odyssey tem um dos maiores mapas alguma vez produzidos para um videojogo e, para rivalizar com ele, tem de apresentar quests à altura e variedade suficiente que justifique a exploração. O mundo foi trabalhado o suficiente para que nenhuma zona se pareça demasiadamente com outra, devendo-se isso à procura do detalhe, com localizações históricas construídas com cuidado e à escala possível. Independentemente do protagonista, a história começa na pequena ilha de Cefalónia, mesmo ao largo de outra bem conhecida, a mítica Ítaca, que para quem conhece a Odisseia, é uma oportunidade para visitar o Palácio de Ulisses (Odysseus em inglês). Este pequeno território rodeado de mar serve de tutorial e, é possível ficar umas boas horas só neste pedaço de terra, tratando de alguns problemas relacionados com dividas de dinheiro e intrigas entre mercenários, explorando os já afamados ponto de interrogação, há procura de loot e desafios. É um começo lento mas recompensador, especialmente porque o mundo transforma-se num colosso depois destas horas confortáveis, enchendo o quest log de demandas que parecem nunca mais acabar. Todas elas com personagens interessantes e histórias complexas, ao jeito do que foi introduzido nesta geração com os mais recentes RPGs. A narrativa é uma mistura de realidade, ficção e algum fantástico, o que se distância de uma série que tinha como interesse manter uma certa coesão histórica. Alguns destes elementos fantásticos fazem parte de quests secundárias, onde há maior liberdade para explorar criaturas mitológicas como o Minotauro ou a Medusa, ou elementos com explicações mais modestas, como é o caso do Ciclope. A história principal mantém os pés mais assentes na terra e aborda os grandes e pequenos temas, como a procura de identidade e da família, que lentamente se vai encadeando com a intriga politica e militar da época.

Chegada a Atenas, com o Partenon no cimo da colina.

Pela primeira vez, na história da saga, aproximando ainda mais o videojogo aos típico RPGs, existe efectivamente escolha, e as diferentes quests completam-se muitas vezes com consequências que nem sempre podem ser medidas nas horas seguintes. O impacto pode apenas ser sentido muito depois e há, sem dúvida, uma janela de oportunidades para moldar a personalidade do/da protagonista. Logo nas primeiras horas, uma aldeia infestada pela peste está ser purgada por um sacerdote. Kassandra ou Alexios têm a oportunidade de salvar uma família da execução, ou deixar que o sacerdote e os seus capangas a matem. A compaixão fará com que mais tarde a praga se espalhe para uma nova ilha, enquanto que deixar o sacerdote executar a família pode encher o jogador de tristeza, mas é um mal menor. Estas consequências não podem ser medidas, mas as escolhas testam realmente a moralidade da melhor maneira possível, quando não há respostas certas.

No seu conjunto Odyssey é mais longo do que esperado, por vezes para o seu próprio bem, com conteúdo que poderá chegar a perto de 90 horas, ou até mais para os complecionistas. Para ajudar, há também quests pré-geradas mais simples, balizadas por tempo, que mantém o mundo dinâmico e garantem conteúdo “eterno”. Algumas delas oferecem recompensas que permitem comprar armas e materiais cosméticos com uma moeda especifica, o orichalcum, numa versão menos hardcore do sistema de loot boxes – ou será loot vases?. É certamente uma infelicidade no contexto das micro-transacções, mas o pior é a store da Ubisoft, que permite a compra de boosts de experiência e dinheiro, mas também recursos, de forma a facilitar o percurso do jogador. É motivo de critica por falta de sentido e que, certamente, deixa alguns jogadores com o pé atrás, com devida razão.

Graficamente, Odyssey é extremamente encantador e uma oportunidade para usar o Photo Mode da PS4, para partilhar as capturas de ecrã com outros jogadores. Dia e a noite trazem a sua beleza natural e a luz é um factor importante na realização deste mundo. Esta Grécia Antiga é colorida e vibrante, pelo que parece a sua homónima real era artisticamente tão berrante que foi decisão artística desfalecer alguns dos tons encontrados no jogo para manter a coesão e não irritar os olhos menos preparados. O mundo parece vivo e um lugar real, com pessoas a seguir a sua vida e praticar os seus credos. A chegada às grandes cidades apresenta um impacto que possivelmente trará ainda mais arrepios a quem conhece a Grécia de hoje em dia. Até dos locais mais inóspitos existem segredos por explorar, tumbas ao jeito de Origins para pilhar e bases militares para atacar. No grande esquema das coisas estes pontos de interesse podem tornar-se repetitivos, especialmente porque muitas destas localizações têm um conjunto de objectivos associados, que devem ser completados e que nunca passam de pequenas acções, como destruir armazenamentos, abrir chests, ou eliminar altas patentes.  Para os verdadeiros aventureiros muita desta dedicação acaba por ser fortuita, especialmente, porque todas estas localizações dão experiência e se coordenadas com outras actividades podem definir o rumo da guerra entre Esparta e Atenas, nos respectivos territórios. Matar líderes das facções do conflito, sabotar mantimentos e matar comandantes, contribui para a instabilidade na área e o jogador pode enfraquecer a presença de um exército num respectivo território provocando um evento que permite lutar como mercenário defendendo a facção que detêm o controlo do mesmo, ou favorecer a atacante, mudando o controlo da área e, com isso, alterando também as cores que as grandes cidades dessa região apresentam, o vermelho de Esparta, ou o azul de Atenas. Presenciar esta mudança e a responsabilidade do jogador na mesma, é recompensador, mas contribui para algum irrealismo. As facções não parecem incomodadas se Kassandra ou Alexios trocarem a sua lealdade como quem troca de roupa interior, de território em território e de batalha em batalha, o que é muitas vezes necessário para corresponder aos objectivos de várias quests.

O inventário de Odyssey

O combate parece seguir a mesma formula de Origins, mas deu grandes passos na sua fluidez. O sistema de lock continua a ser abismal, especialmente quanto o combate envolve mais do que um adversário, mas as habilidades dão uma nova personalidade cheia de combinações. O jogador pode escolher entre três árvores, e nunca está preso por dedicar mais pontos a uma do que a outra. São os níveis que vão desbloqueando os vários patamares, e não a quantidade de pontos investidos. Este facto dá uma liberdade enorme, que permite conjugar as árvores de arqueiro, o guerreiro, e o assassino em combinações mortíferas. Ao jeito de 300, o pontapé espartano é talvez a habilidade mais interessante, e permite empurrar o mais duro dos inimigos pela colina abaixo para a sua morte, sem esforço algum. O dano que cada árvore de habilidades faz esta directamente ligado às peças de equipamento e armas. E a escolha é enorme! Infelizmente, é também frustrante receber uma nova peça de equipamento para descobrir que aumenta o dano de habilidades que não estão a ser usadas. Felizmente, os ferreiros oferecem maneira de melhorar peças de equipamento muitos niveis abaixo, o que permite manter um item com bons atributos até ao final do jogo, a troco de alguns recursos, como peles e metal.

Pelas características do mapa, cheio de ilhas e tesouros submersos, o barco é também obrigatório, e o seu papel é tão importante como em Assassin’s Creed IV: Black Flag (2013). O barco de Kassandra ou Alexios, o Adrestia é, em si, só uma personagem. Pode ser melhorado com recursos e modificado visualmente através de recompensas ou skins compradas ou store da Ubisoft. Mas quando as batalhas navais chegam ao seu pico, há um turbilhão de carnificina marítima a acontecer. Desde setas em chamas a lanças, há um certo prazer em abordar um barco mercante ou simplesmente afundar o navio e ver os seus tripulantes a chamar os tubarões da zona. Nas grandes batalhas com vários navios, abordar e saltar para de navio em navio inimigo pode ser a única forma de sobreviver, uma vez que embarcar e matar a tripulação restaura a vida do Adrestia, e irrealisticamente, para a batalha em curso para que o jogador se foque no navio especifico. Mais do que lutar, explorar é das experiências mais gratificantes, pela beleza do mundo e a variedade de localizações. Navegar em direcção ao por do sol, ou pela noite dentro torna-se ainda mais emocionante quando os marinheiros do Adrestia cantam em grego canções que podem inclusive relacionar-se com a aventura do protagonista. São nestes pequenos detalhes que a realização da Grécia Antiga ganha real forma!

Pela primeira vez em Assassin’s Creed, há também uma nova maneira de corrigir o comportamento errático do jogador através de um sistema complexo de mercenários. Tal como em Grand Theft Auto, com as suas estrelas e graus de perseguição policial, Odyssey tem um sistema que permite evitar e corrigir o eventual comportamento infame do jogador. Roubar e matar nas barbas da autoridade, falhar a conquista de um forte sem ser descoberto, ou matar um cidadão importante nas barbas de outras personagens, fará com que alguém ponha a cabeça de Kassandra ou Alexios a prémio. Dependendo da gravidade, vários mercenários divididos por dificuldade e prestigio entrarão em acção. Alguns são pré-gerados, e outros são criações fixas, em constante rotação, e perseguem o jogador quase que instantaneamente. A única coisa a fazer é matar o individuo que detém o contracto, pagar para que este cesse, ou matar e fugir dos mercenários até à recompensa expirar. Caçar mercenários é também uma forma de negócio, tanto porque têm itens que podem ser equipados, ou porque podem ser recrutados para ser tenentes no barco do protagonista, sendo que para isso é necessário incapacitar e não matar os mesmos. Este sistema parece uma versão simplificada daquele que é parte central nas hierarquias de orcs em Middle-Earth: Shadow of Mordor (2014) e Middle-Earth: Shadow of War (2017).

Kassandra a bordo do Adrestia

Mais tarde na aventura é também introduzido o Culto de Kosmos, uma facção que tem influência em toda a Grécia e que detém cultistas espalhados um pouco por todo o território. Além de uma grande revelação, que seria spoiler se fosse desde já endereçada, caçar os membros deste culto permite ganhar pequenos artefactos que permitem melhorar a Lança de Leonidas. Esta perseguição permite também receber pistas sobre outros membros espalhados pela Grécia, e quando o jogador detêm pistas suficientes pode revelar a identidade dos mesmos, como se houvesse um jogo de Cluedo em curso, ou um estranho final de episódio de Scooby-Doo. Este sistema vive separado do que rege os mercenários, mas por vezes todos estes elementos juntam-se num caos característico, e também bem vindo, numa Grécia em constante mutação. O mundo parece vivo, com facções a resolver as suas batalhas e a perder e a ganhar territórios, por vezes sem intervenção do jogador.

Por fim, a música está a cargo de uma variedade de artistas, com destaque para o compositor Mike Georgiades,  abraçando o passado e o futuro de forma suave e sem intrusões. A banda sonora está disponível no Spotify e é altamente aconselhável, pela atenção ao detalhe. Para além das canções dos marinheiros do Adrestia há também alguns trechos de exploração com vocais em grego. Esta conjugação cria um ambiente clássico que por provoca arrepios na espinha. Mais uma prova de que qualquer banda sonora melhora um mundo e uma narrativa.

Assassin’s Creed: Odyssey é uma maneira óptima de reafirmar a saga nesta nova direcção de completo modo RPG. Apresenta muitos dos clichés que marcam os jogos do género nesta nova geração, para o bem e para o mal. A Grécia Antiga é extraordinariamente  bem construída e está recheada de conteúdo, o que para os jogadores mais casuais poderá não ser convidativo. Fará certamente as delicias de quem gosta de jogar durante centenas de horas, e embora o conteúdo possa ser repetitivo, especialmente no que toca à exploração, é variado o suficiente para manter o jogador mais dedicado agarrado ao teclado ou ao comando. Os dois protagonistas e o factor escolha são essenciais na possível sobrevivência e repetição do jogo, sendo que a história principal cativa, e o conteúdo secundário é interessante e mistura-se bem na instabilidade política e militar. Os novos sistemas afastam Odyssey de parecer apenas o mesmo jogo que Origins num outro contexto histórico, mas isso não quer dizer que quem odiou a aventura de Bayek vá gostar de Alexios ou Kassandra. É bem possível que os motivos de critica sejam maioritariamente os mesmos, mas para quem gosta desta nova reencarnação os novos sistemas tornam o mundo ainda mais vivo e dinâmico. É, talvez, um dos grande RPGs de 2018 e tem conteúdo em expansão para 2019, com duas novas histórias que vão explorar alguns temas familiares à saga. Entre este conteúdo pago e coberto pelo season pass estão adições gratuitas que têm como alvo aqueles que quiserem enriquecer a experiência sem gastar mais dinheiro. A nota negativa prende-se em especial no fenómeno das micro-transacções, que mostram outra vez as suas garras numa indústria que não aprende com os erros da concorrência. Odyssey é altamente recomendado e será ainda mais divertido com conhecimento histórico da época que representa, mesmo que com algumas liberdades criativas.

Nota: Todas as capturas de ecrã foram feitas durante a review e tratadas no Photo Mode na PS4 Pro.

Voltarei em breve com mais videojogos…