As aventuras de uma portuguesa na Alemanha – 3ª e última parte

(CONTINUAÇÃO DA SEMANA ANTERIOR E CONCLUSÃO)

Despertei sobressaltada com o barulho a cair de uma cadeira que alguém depois arrastou pelo soalho do piso superior. Devia ter um risco tão grande que se fosse na pintura do meu carro em Lisboa me teria tirado o sono de igual modo. Espreguicei-me e não corri a apagar a luz, que ficara inadvertidamente acesa, porque na rua já começara a escurecer e, se o fizesse, eram capazes, as pessoas que andavam lá fora a passear, de começar a esbarrar umas nas outras por falta de visão. Olhei para o relógio de pulso e a primeira coisa em que reparei foi no bracelete dourado que parecia uma pulseira de ouro como a que gostaria de receber nos anos. Achei que já era tarde, mas mesmo pelo fuso horário de Portugal já estaria atrasada para sair e ir a qualquer parte. Adiantei uma hora os ponteiros do relógio e senti-me não só como se tivesse o poder de manipular o meu tempo mas o de toda a gente.

No dia seguinte, acordei numa posição desconfortável e tinha o pescoço dorido como se tivesse dormido toda a noite sem almofada. Doíam-me as costas e os braços do peso das malas na véspera que pela maneira como as arrastava deviam pensar que vinham carregadas de halteres. Tomei depois um banho reconfortante que me abriu o apetite para um pequeno-almoço de um atleta de alta competição, como se o esforço do dia anterior de que me queixava naquele instante tivesse sido acabado de fazer. Para não guardar a roupa na cómoda em gavetas forradas a folhas de jornal, fui à rua e comprei papel de embrulho, como aquele em que, um namorado que eu tive, embrulhava as peças de lingerie que me oferecia. Depois, desci a escada, pedi ao empregado de receção que anotasse algum recado e, no caso de me telefonarem da escola para saber se já tinha chegado, dizer que devolveria a chamada o mais rapidamente possível e saí. Tinha decidido passar as primeiras vinte e quatro horas em Berlim, revisitando os lugares que não me importaria de rever todas as semanas, e por fim terminá-las da melhor forma com um cruzeiro noturno nas águas tranquilas do Spree, que haveria de trazer-me lembranças do Tejo ou, a partir da vista que se obtinha para as margens, de um dos bairros típicos de Lisboa.

Havia motivos de interesse para lá da célebre cúpula de vidro do Reichstag ou dessa raríssima joia da arquitetura moderna que era a Postdamer Platz.

A caminho de Check-point Charlie, que foi o centro de um conflito na guerra fria, passava-se pela Alexander Platz, o centro histórico de Berlim oriental que durante muitos anos esteve no centro das disputas entre americanos e russos. Mas era no Memorial do Holocausto que estavam as memórias vivas de um conflito de maiores dimensões pelo número de vítimas inocentes que causou.

Como se de um posto observação dessa época se tratasse, avistava-se ao alto, das ruas adjacentes ou de qualquer ponto da cidade, a Fernsehturm. De perfil pontiagudo, o célebre palito que funcionava como torre de televisão, tinha uma plataforma panorâmica, acessível através da subida dentro de uma esfera gigante de aço, do cimo da qual a cidade devidamente ordenada parecia ter sido projetada pelo arquiteto da belíssima Gendarmenmarkt, o mesmo que deve ter idealizado a Unter Den Linden com os seus monumentos construídos entre os séculos XVII e XIX, entre os quais a Ópera neoclássica. As ruas era paralelas e perpendiculares umas às outras e as pessoas pareciam representações dos quadros expostos na moderna Neue Nationalgalerie.

Numa viagem ao passado que podia começar na antiga estação ferroviária reinventada para albergar o espólio de som e imagem do museu Hammburger Bahnhof, diante da imponente estrutura neoclássica das Portas de Brandeburgo, recuamos à elegância das formas inspiradas na antiga entrada da acrópole de Atenas que tornou o povo grego dessa época quase tão famoso pelo brilhantismo dos seus arquitetos como pelos seus filósofos.

Parei para almoçar numa típica cervejaria alemã, com vista a partir da esplanada para o célebre edifício neobarroco da Komische Oper, que antes das duas da tarde começou a encher-se de adeptos engalanados com motivos alegóricos para assistir a uma partida de hóquei em campo do campeonato do mundo que ia ser transmitida por um canal desportivo através da televisão. Vestiam-se com as camisolas da respetiva seleção, numeradas nas costas como se este, que devia ser o seu número de série, fosse a única maneira de distingui-los à saída da linha de montagem de uma fábrica onde eram produzidos aos milhares.

Desagradavam-me os gritos deles que se sobrepunham aos meus, para chamá-la e fazer o pedido, em direção à empregada de minissaia que não trajava com as cores da bandeira nacional mas dava mais nas vistas dos que eles. Andava como uma barata tonta de um lado para o outro tentando percorrer o espaço que varria com o olhar. Tornava-se evidente que era tão inútil tentar ir a todas as mesas ao mesmo tempo como eu pretender que nem toda aquela gente faminta pedisse salsichas a fim de sobrar alguma para mim. Enquanto alguns entoavam cânticos saídos de um repertório que devia estar traduzido em todas as línguas, outros soltavam grunhidos, comportando-se como os antigos habitantes das cavernas que por cima da sua colocavam a pele dos animais que caçavam como se fossem os troféus que se conquistavam hoje em dia.

No meio da algazarra não eram comedidos em festejar a entrada das equipas em campo mas poucos minutos volvidos do começo da partida calaram-se quando o locutor anunciou o primeiro golo da equipa adversária. Alguns deles entreolharam-se como se procurassem entre eles o culpado e eu aproveitei para sair sem me despedir, e só não foi à francesa porque não sabia se era contra a seleção desse país que a da Alemanha, mal começou o jogo, já estava a perder.

Afastei-me do local com mais fome do que tinha na véspera quando me ofereceram como única refeição um copo de chá frio e uma sande de fiambre no avião. Atravessei a rua fora da passadeira e entrei num pequeno restaurante onde à porta havia colado o desenho de uma caneca de cerveja na mão de um compatriota de Merkel que já devia ir pelo menos na segunda porque a medida daquela estava inalterada. Desta vez, saiu ao meu encontro um empregado de ar patusco com quem não me importaria de sair porque devia levar-me a conhecer lugares divertidos, talvez teatros de comédia, em vez de pensar em ir à ópera. Apontou-me o lugar à mesa numa que estava quase encostada ao balcão onde dois homens de pé envergando fato e gravata conversavam animadamente de cotovelo apoiado, debruçando-se como se pretendessem espreitar para dentro um do outro. O que aparentava ser mais novo era da altura do empregado e tinha olhos verdes iguais aos seus. Era mulato e devia ser estrangeiro mas falava sem sotaque, pelo que pensei que devia já trabalhar há tanto tempo no país que estava habituado a falar da terra dos pais e do sítio onde nasceu como de um lugar que a mãe nunca tivesse visitado.

Trouxeram-me um prato cheio de salsichas que barrei com mostarda e comi-as lentamente como se saboreasse, em cada uma, um sabor e uma textura diferentes.

Despachei-me em menos de quinze minutos e apanhei um elétrico da S-Bahn que me levou em direção a Postdam. Era uma forma diferente de viajar, daquela que eu tinha em Lisboa, sem pressa de chegar a nenhum lado porque a esperar-me não havia senão monumentos centenários que não perderiam num par de horas nenhuma das características que os celebrizaram ao longo de tantos séculos.

Nessa cidade, visitei os famosos palácios que foram residência oficial dos reis da Prússia e, por fim, deixando para trás o palácio Sanssouci, de regresso ao hotel ainda tive tempo de passar no centro de Berlim e, a partir das margens calmas do Spree, admirar a passagem de um belíssimo barco à vela que me fez sonhar com outras paragens e com a perspetiva de um dia vir a contemplar a vida a partir de um ponto de outra latitude à escala do planeta mas que ocupasse o mesmo lugar do que Berlim ou Lisboa no meu coração.

FIM

(Nota final: caros leitores, poderia alongar a história mas se o fizesse quem um dia poderia desejar que eu emigrasse eram vocês. Por isso, a vida desta personagem acaba aqui, mas desejo à pessoa que me inspirou a criá-la, Professora Marta, os maiores sucessos em Portugal ou na Alemanha, onde agora reside a coordenar o ensino do Português. )