Blade Runner 2049 – “Mais Humano que os Humanos” (Review)

Passaram-se mais de trinta anos, tanto no ecrã, como fora dele. Ambos os mundos mudaram e com eles, também a abordagem dos grandes e pequenos temas. Será que Denis Villeneuve conseguiu criar uma obra-prima digna o suficiente para não viver na sombra do seu imaculado antecessor? O que traz esta sequela a um dos grandes pilares da ficção cientifica? 

 

Título Original: Blade Runner 2049

Ano: 2017

Realizador: Denis Villeneuve

Cinematografia: Roger Deakins

Produção: Broderick Johnson, Andrew A. Kosove, Cynthia Sikes, Bud Yorkin

Argumento: Hampton Fancher, Michael Green, Hampton Fancher, Philip K. Dick (livro)

Actores:  Harrison Ford, Ryan Gosling, Ana de Armas, Robin Wright

Música: Benjamin Wallfisch, Hans Zimmer

Género: Ficção Cientifico

Ficha Técnica Completa

 

 

Em 1982, o primeiro filme de Blade Runner não vingou na bilheteira. Influente o suficiente para ter criado a ambiência do cyberpunk, só conseguiu o sucesso merecido depois de um amadurecimento, que não deve ser muito diferente ao de um bom Vinho do Porto. Visualmente espantoso, até para os padrões de hoje em dia, o filme deixou a sua marca pela forma única com que abordou a cinematografia, mas também pela música irreplicável de Vangelis. Ridley Scott tinha criado um monstro, que embora não compreendido, influenciou quem lhe prestou a devida homenagem. Durante 32 anos, muitos foram os media que tentaram seguir a sua abordagem, tornando-se até num fenómeno crossmedia, com um videojogo do mesmo nome de 1997 da velhinha Westwood Studios, também ele alvo de cultoque utilizou uma narrativa que vivia lado a lado com o filme, revisitando cenas de uma outra perspectiva, ao jeito das icónicas aventuras gráficas.

Mas, se Blade Runner encontrou a luz na nossa adoração e consciência foi também devido à insistência do seu principal criador. Até ao momento existem oito versões diferentes do filme, sendo que The Final Cut é talvez a mais importante, concretizando a visão do realizador Ridley Scott, beneficiando de toda a liberdade de edição e de algum progresso tecnológico, que não arruínam em nada a sua era e o seu pódio. A história mantêm-se mais ou menos igual, se bem qu, a versão que passou em 1982 contava com um final forçado, onde Deckard e Rachael fugiam para um futuro radiante. Esta última cena não era do agrado de Scott e, pelo que se vê em 2049, já não parece fazer sentido.

Se o original Blade Runner abordava as grandes questões de uma forma dissimulada antevendo um futuro baseado em mão-de-obra escrava e criada artificialmente, para a indústria e para a guerra, e que se revoltava contra o seu criador através de uma história minimalista, Blade Runner 2049 é um melhoramento das suas temáticas, introduzindo as grandes preocupações de uma nova era e de uma nova sociedade. Os nossos medos e receios sobre o futuro tecnológico são transportados directamente para a realidade do filme! Ao tema do que realmente é ser “humano”, que marcou o original, junta-se a objectivação da inteligência artificial para fins comerciais, pairando no dia a dia do agente “K” (Ryan Gosling), num Mundo onde o “racismo” de humano para robô cria também um clima de objectificação e sexismo, através de uma Humanidade que não mediu as consequências da criação de um ser consciente, que tem de viver com o facto de não ter nascido e, por isso, reflectir sobre o que significa não ter “alma”, e vislumbrar a não existência que vive inerente à sua condição e que vai para além dela depois do fim.

Mesmo com a expansão, e com uma maior reflexão dos grandes temas, é importante perceber que Blade Runner 2049 possui uma narrativa que não tenta resolver os grandes problemas do mundo idealizado por  Philip K. Dick, ou o que resta dele, mas aposta sim numa narrativa passageira. É, por isso mesmo que, a frase proferida algures no desenrolar do filme parece tão apropriada: “Pensavas que eras especial?” Em quase três horas de filme, somos confrontados com os fantasmas do passado, pelas narrativas que ficaram por fechar em 1982 e por novas dimensões de um mesmo problema. Mesmo quando a resposta está à frente dos nossos olhos a história surpreende, mexe com a nossa compreensão e com a nossa realidade. Podemos dizer que há plot twists, ou talvez a falsa noção de que eles existem. A narrativa tenta “programar-nos” pela visão das personagens, na falsa ilusão de que tal como elas somos especiais. No entanto, não somos testemunhas de uma grande narrativa contra a distopia, que acaba com a destruição do grande mal ou da tirania vigente. Não! Somos passageiros. E passageiras são também as personagens, que vivem a sua pequena parte e o seu contributo, com início, meio e fim, agora num registo menos noir. As grandes questões valem pela reflexão e não por qualquer resolução que possam trazer. As pequenas fecham o círculo do recém chegado “K” e do velho Deckard, de forma surpreendente e mais que satisfatória, no meio de um loop de emoções e boas interrogações. 

Villeneuve, aliado à cinematografia de Roger Deakins, consegue visuais incríveis e certamente dignos de uma estatueta dourada, sem grande esforço para se associar directamente com o original Blade Runner. Sem perder tempo a replicar o que já foi feito em 1982, há espaço para novas abordagens. Existem sem dúvida momentos de nostalgia, que definimos como testemunho e homenagem à fita anterior. Mas há também cenários e planos pensados para viver lado a lado com a mestria do original, criando o seu próprio colosso e expandido o universo para novos tons e localizações, que se afastam do olhar industrial e comercial de Los Angeles de 2019, e mostram a destruição causada pela raça humana, de forma por vezes grotesca, e por outras, voluntariamente bela. Nada é ao acaso, e nenhum plano é descurado. Sabemos como audiência que, a simples existência de uma face na escuridão tem um propósito, que uma sala iluminada pelas ténues silhuetas da ondulação de água tem o seu grau de artístico, embora pouco prático na realidade, especialmente para quem gosta de ler, é bonito na tela! 

Tecnicamente, no campo dos efeitos especiais há muito por dizer, mas pouco pode ser ilustrado por palavras. Sem enveredar por spoilers, é interessante como a ausência de forma física de uma personagem pode ser explorada através de várias componentes técnicas em interacção com o ambiente que a rodeia. Interessante também como mais uma vez uma das personagens do original ressurge com a ajuda de efeitos especiais, sendo nos primeiros segundos imperceptível a existência de qualquer trafulhice técnica. Star Wars: Rogue One saiu há menos de um ano e já parece estar levemente datado quando comparado com a tecnologia utilizada. Não é perfeito, mas engana certamente, acabando por nos fazer reflectir sobre a própria temática do filme. Tão irónico que uma narrativa focada no erro de criar um robot à nossa imagem recorra a um método que, não só rejuvenesce actores, como noutros casos “ressuscita” os já falecidos.

Quanto às interpretações, é notável a vitalidade de Harrison Ford, que regressa como Deckard para talvez, uma das suas grandes performances em anos recentes. O seu contributo é bastante concentrado na escala de todo o filme, aparecendo já depois da metade do mesmo, no entanto a espera compensa para os momentos de emoção e nostalgia. Já Ryan Gosling parece ter sido feito para o seu papel. Embora consiga passar muitas emoções, a sua expressão como actor é, por vezes, demasiado estática e desinteressante. Essa postura engrandece o seu papel e a veracidade da sua personagem. Os papeis secundários são também incontestáveis. A menos conhecida Ana de Armas parece uma boa aposta na indústria de Hollywood, através da sua performance como a inteligência artificial Joi. De louvar ainda o regresso muito breve de Edward James Olmos, que vem a Comicon Portugal este ano! Menções ainda para o realisticamente conturbado Jared Leto, que pelo que parece treinou para a sua personagem, Niander Wallace, simulando a sua cegueira. Pontos ainda para a incrível prestação de Robin Wright, e para a relativamente curta contribuição de Dave Bautista. Sem dúvida um elenco inspirado!

Quanto à “actriz terciária” chamada música, há algumas notas importantes a reter. Ninguém pode “replicar” Vangelis e, infelizmente o compositor, que ainda este ano lançou um álbum bastante inspirador, Rosetta, não quis dar qualquer contributo a este novo capitulo. O filme perde por isso, mas a banda sonora de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer cumprem o seu papel. Tal como o filme, não se agarram em demasia ao material já existente. A música é menos noir, tal como o filme, mas é também menos icónica. Ponto positivo para o reciclar da música de Vangelis no tempo certo, com Tears in the Rain, para que a nossa nostalgia também emane uma certa saudade do compositor grego. A banda sonora não é desprovida de qualidade, mas pode tornar-se monótona, ou só realmente apreciada depois de três ou quatro audições.

Blade Runner 2049 é uma raridade numa indústria cheia de sequelas que nunca recriam a especificidade dos produtos originais. Não só renova como avança dois passos em frente, sem medos, e traça um novo caminho e um novo padrão. A narrativa dá uma sensação de produto finalizado, de uma história que fechou dentro de um mundo em constante movimento, com temáticas que vivem na impossibilidade de ser resolvidas. Denis Villeneuve ganha, a pouco e pouco, o estatuto de uma das lendas de direcção de Hollywood. O filme bem que poderá chegar às estatuetas em prémios técnicos ou de Melhor Realizador. Talvez o céu seja o limite! Com a audiência fica a possibilidade de infinita reflexão sobre as grandes questões, em como evitá-las como sociedade, vivendo alertados para as mesmas. Talvez seja por isso que o filme não tenha chegado aos números esperados na bilheteira americana, embora com críticas mais que positivas. O cinema deixou algures de ser feito para reflectir durante e à saída da sala, e Blade Runner 2049 surge para a reflexão da própria existência, ou seja, para a reflexão de uma vida…

9.5

Volto brevemente com mais cinema…